Torne-se perito

"Este filme é sobre a hipocrisia carioca. É dela que vive a violência"

Tropa de Elite já é o filme mais comentado do ano no Brasil. O realizador provocou as feridas da corrupção e das cumplicidades, o sistema reagiu

a Prevê-se que o filme de José Padilha percorra os festivais de cinema, de Veneza a Cannes. Prevêem os críticos que atinja recordes de bilheteira. Que incomode, que aturda. Prevê-se. Uma proeza inédita já conquistou: Tropa de Elite tornou-se o filme mais comentado no Brasil mesmo antes de ser hoje apresentado pela primeira vez na abertura do Festival de Cinema do Rio. Uma cópia pirata circulou pela rede e originou uma avalancha de reacções. Padilha tocou na ferida do sistema. Destapou os emplastros da corrupção, apontou o dedo à hipocrisia dos que alimentam a guerra nas favelas. E o sistema reagiu. Um grupo de polícias militares tentou impedir a divulgação da obra. Nas ruas ouvem-se acusações aos elementos de segurança. Nos gabinetes políticos afinam-se antecipações às maleitas expostas na película. Poucos dias antes da estreia, o governador do Rio, Sérgio Cabral, reconhecia que a mensagem de Padilha é "dura e verdadeira"."Tinha a certeza absoluta que o filme iria gerar reacções das autoridades. Apenas retrata a realidade que as pessoas já conhecem", expôs José Padilha ao P2. Coincidência ou não, esta semana 58 polícias foram detidos no Rio de Janeiro por ligações com traficantes de droga. Esta semana, o secretário de Segurança do Estado acusou de hipocrisia as manifestações contra a violência urbana. Coincidência? Ambos os temas são retratados na película. Será a realidade a seguir a reboque a ficção?
"Recolhi depoimentos de um grupo de agentes policias e psiquiatras. E tentei mostrar como a interacção entre diversos grupos sociais gera este estado de violência, de guerra no Rio de Janeiro", esclarece.
O estilo traz reminiscências da Cidade de Deus, de Fernando Meireles. É nu, é cru. O filme é sobre a realidade. E está permanentemente ameaçado por ela. Enquanto filmava na favela Morro da Mangueira, a equipa sentiu que a ficção, neste caso, ficava aquém da realidade. "Eram 5h30 da madrugada. Um grupo de traficantes armados com granadas e metralhadoras sequestrou toda a equipa, meteu-nos numa carrinha e só nos libertou mais tarde." Além do "trauma", a produção ficou sem dezenas armas, algumas adaptadas a tiros de pólvora seca. "Também tivemos problemas com a polícia. A realidade invadia permanentemente o set de filmagem". As imagens denotam essa pressão. Catarse está sempre iminente.
A ideia para o argumento surgiu-lhe enquanto filmava Onibus 174, um documentário sobre o sequestro de um autocarro no Rio de Janeiro, conquistou Emmys ,foi eleito Melhor Documentário e Melhor Filme Brasileiro no Festival do Rio; prémio do Júri de Melhor Documentário na Mostra São Paulo, e arrecadou prémios nos Festivais de Rotterdam, Miami e Havana. Padilha fez rodar a objectiva para um tema paralelo. Ouviu depoimentos, consultou sociólogos e escreveu o argumento com Rodrigo Pimental, um elemento do Batalhão de Operações Policias Especiais (BOPE), a tal tropa de elite. A sinopse é simples: o realizador centrou-se no quotidiano de um grupo de polícias e de um capitão do BOPE (o actor Wagner Moura, sim, o vilão Olavo da telenovela Paraíso Tropical), que quer deixar a corporação e tenta encontrar um substituto para o seu posto; paralelamente dois amigos de infância tornam-se polícias militares e destacam-se pela honestidade e pela indignação contra a corrupção existente. Sem filtros, o resto é exposto nos muitos espaços que sobejam. A teia está montada e surge cristalina.
Os cúmplices
José Padilha esforçou-se por contribuir para que o cinema "objective a realidade". É a arte engajada a uma ideia que quis ostentar. Nua. À medida que as filmagens avançam pelo labirinto das favelas do Rio de Janeiro e pelos sinuosos expedientes das forças de segurança, apenas o "sistema" sai exclusivamente culpado. Os corruptos e as crianças soldado do tráfico são vítimas. A classe média, cúmplice inconsciente. "É quase como se tivéssemos na instituição policial uma realidade desenhada para empurrar os polícias para a marginalidade." Tradução? "A polícia está mal equipada, e mal paga, e a sociedade pede-lhe que subam as favelas para enfrentar traficantes que têm armas de guerra." Nas favelas, o efeito do "sistema" será semelhante. "As crianças são pobres, não vão à escola, a polícia é violenta. Que alternativas têm? Seguem os traficantes, que são os ídolos locais."
Como catalisador do sistema, o realizador desnuda a "hipocrisia da classe média carioca". "É ela que consome maconha e cocaína. A mesma, que indirectamente, financia o tráfico, suporta a guerra nas favelas."
Numa das cenas, um oficial do BOPE insulta e agride um elemento de uma manifestação contra a violência. "Quando as regras do jogo são estas, o resultado é este: uma realidade violenta e assustadora."
Em cena, o argumento metamorfoseou-se em tabuleiro de xadrês em que cada personagem perspectiva as peças do seu ponto de vista. Todos os olhares são legítimos, todos condenáveis. "No Rio de Janeiro tudo é cinzento. Nada é só branco ou só preto. Nada é o que parece. E as pessoas convivem com este mundo cinzento como se fosse normal." O que há então de novo neste filme que desafia a opinião pública? As imagens. "Tropa de Elite mostra uma realidade que a gente supõe, uma realidade da qual a gente quase sabe, mas que é tão difícil de enxergar", sintetiza o actor Wagner Moura. Hoje, a obra inaugura o Festival do Rio. Dia 12 de Outubro estreia nas salas.

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