Morreu Francisco Umbral, um puro sentimental

A controvérsia esteve sempre na sua escrita. Mas a agressividade escondia, afinal, um sentimental

Marxista e agnóstico. Soberbo e agressivo. Controverso e genial. Não faltam epítetos para designar Francisco Umbral, o escritor e colunista espanhol que morreu na madrugada de ontem, vítima de paragem cardíaca, numa clínica de Madrid.

Tinha 72 anos e deixou mais de uma centena de livros de diversos géneros literários. No seu último título, Amado Siglo XX, publicado em Março pela Planeta, transpôs para a escrita alguns momentos da sua vida, evocando os dias de boémia e as tertúlias no café Gijón nas décadas de 60 e 70. Neste livro há verdades e há mentiras. Como em todas as suas criações, aliás.

Não foram, contudo, os livros que lhe granjearam sucesso. Todo o seu reconhecimento resulta da mestria que vinha à superfície nas suas crónicas - primeiro no El País (Diário de um snob e Spleen de Madrid) e desde 1990 no El Mundo (Os Prazeres e os Dias).

Houve quem escrevesse que Paco, como era conhecido entre os seus amigos, era uma espécie de alquimista literário - todas a sua escrita era pura literatura. Mas, apesar dos conceituados prémios que recebeu (Prémio Príncipe das Astúrias em 96 e Prémio Cervantes em 2000), a Real Academia Espanhola, a instituição literária mais nobre de Espanha, nunca lhe deu um lugar entre os seus.

Esta frustração foi sempre um punhal no peito de Umbral. "O fracasso acompanhado de uma obsessão não é mais do que uma fragilidade do indivíduo, e esta foi a de Umbral, talvez pouco confiante na sua verdadeira dimensão e demasiado pendente do reconhecimento pomposo", notou ontem o escritor Alejandro Gándara, num texto no El Mundo. Esse ressentimento e essa mágoa eram notórios nas crónicas que o autor, oriundo de uma família de classe média baixa, escreveu para diversas publicações. Mas foram elas que fizeram "brilhar" o escritor que só frequentou a escola entre os 10 e os 11 anos.

Sempre Madrid

Quase sempre polémicas, as crónicas oscilavam entre o estilo incisivo, sarcástico, humorístico ou violento, abordando temas da Corte e das ruas (sempre Madrid, onde nasceu), o que lhe valia ter tantos incondicionais como detractores. Nos últimos 17 anos, a última página do El Mundo era o lugar onde, diariamente, os leitores se confrontavam com o olhar mordaz e sempre cosmopolita de Umbral.
"A minha cara, por enquanto não é esquelética e procuro nela o menino que passou e não o encontro", escreveu em Mortal e Rosa, editado em Portugal pela Campo das Letras, que publicou ainda mais dois títulos da sua autoria: E como eram as ligas de Madame Bovary? e Madrid 1940: Memórias de um Jovem Fascista. O jornalista Carlos Vaz Marques, que traduziu os dois primeiros livros e o entrevistou em 2000 (entrevista que se tornou numa antestreia do programa Pessoal e Transmissível), recorda-o como um homem de "excessos paradoxais": "Tinha um lado quase brutal e também um lado lírico, como o tinham Buñuel ou Picasso."

A agressividade que incutia nas suas palavras revelava, porém, um fundo sentimental. "Dizia que era agressivo porque tinha transferido a violência da infância (batia muito nos outros meninos) para a literatura", contou Vaz Marques ao P2.
A fragilidade, essa, ocultava-a com tiradas espirituosas ou cínicas. Questionado sobre se a morte o assustava respondeu, numa entrevista à revista Nova: "Estou cansado de viver. Já vivi tudo, o mau e o bom. Esta ladainha repete-se. Fazem-te sempre as mesmas "cabronadas", sempre as mesmas pessoas. A verdade é que não espero nada de novo."

As reacções à morte do autor que gostava de dizer que preferia o inferno ao céu ("será mais divertido") vieram de todos os quadrantes da sociedade espanhola. "É uma figura imprescindível das letras espanholas", frisaram os reis de Espanha em comunicado; "fez da sua coluna um género literário e uma obra de arte quotidiana", escreveu Pedro J. Ramírez, director do El Mundo; "Todos os colunistas da imprensa da minha geração devem algo a Umbral", sublinhou o filósofo Fernando Savater.
Hoje Umbral é cremado em La Almudena. As suas cinzas serão depositadas junto aos restos mortais do seu filho, que morreu aos seis anos. Esta morte foi uma das cicatrizes que nunca escondeu.

Sugerir correcção