As armas do punk

Houve uma altura em que Gregg Araki, seguindo a pulsão panfletária dos seus gestos cinematográficos iniciais, dizia que os seus filmes estavam resumidos num lamento dos Smiths, "Heaven knows I"m miserable now". Na parte em que Morrissey canta: "Porque é que gasto tanto tempo com pessoas que se estão nas tintas para que eu viva e morra?"

Quando falamos desses inícios, falamos de "The Living End" (1992), "Totally F***ed Up" (1993), "The Doom Generation" (1995) ou, já menos relevante, "Nowhere" (1997) - os três últimos formam a trilogia "Teenage Apocalypse". Falamos daquilo que ficou conhecido como "new queer cinema": no início dos anos 90, um artigo na revista britânica "Sight & Sound" e outros que se seguiram no americano "Village Voice" reflectiam (e assim cunharam a expressão...) sobre o aparecimento no circuito "indie" de uma vaga (Araki; o Tom Kalin de "Swoon", 1992; o Todd Haynes do filme com bonecas "barbie", "Superstar: The Karen Carpenter Story", de 1987, ou de "Veneno", de 1991; Derek Jarman...) que, guerrilheira, questionava as identidades sexuais contra o que o politicamente correcto da altura definia.

Repare-se: viviam-se os efeitos devastadores da crise da sida, sopravam vendavais conservadores, e, como antídoto, a comunidade homossexual lutava pela promoção de imagens positivas, no cinema concretamente. E o que fazia Araki? Com a sua produtora, muito simbolicamente denominada Desperate Pictures, filmava "The Living End" (o título vinha de uma canção dos Jesus & Mary Chain, o subtítulo dizia: "Um filme irresponsável"). As personagens eram dois seropositivos (um crítico de cinema e um prostituto) que se atiravam juntos "on the road" pela América. "Leva-me para fora desta porra deste louco planeta", dizia um ao outro. "Escolhe a morte", lia-se na placa do carro (porque antes a morte que "o sexo de plástico"). E havia ainda: "Somos vítimas da revolução sexual. Toda a gente que fodeu antes do tempo do sexo seguro ficou fodido."

Em "The Doom Generation" (subtítulo: "Um filme heterossexual de Gregg Araki"), a "geração MTV", aqueles que "vivem e ressuscitam dez vezes por dia", estava representada por três adolescentes, "road movie" outra vez, sexo e sangue. Araki dizia que era o seu "Week End", afirmando Godard no seu mapa de referências. Foi, na verdade, a apoteose desta fase, hiperbólica no niilismo, ensurdecedora (Coil, Cocteau Twins, Nine Inch Nails, Jesus and Mary Chain), à beira da autocomiseração (alguém se suicida depois de ouvir "Unloveable", dos Smiths), mas onde o "não há lugar para nós neste mundo" é salvo "in extremis" pela farsa e por violentos sobressaltos. Por exemplo, depois da imolação do ideal juvenil, um arroto...

Alucinante "cartoon" hiper-realista, em que os diálogos parecem néons pop na boca das personagens, "road movie" por uma topografia mental, "The Doom Generation" é de uma incandescente ternura quando acaricia os rostos, em demorados grandes planos, das personagens - um trio filmado como um corpo promíscuo, autofágico.

A "etiqueta" "new queer cinema" iria cobrar dividendos. "Nowhere", o filme que se seguiu, já rodava sobre o vazio. Araki tentou autonomizar-se das expectativas e das "agendas", aventurando-se por uma homenagem à comédia romântica dos anos 30 e 40, "Splendor" (1999), mas os fãs denunciaram uma submissão ao sistema. O maior "escândalo" parecia ser o facto de Araki se ter envolvido com a intérprete do filme, Kathleen Robertson, uma mulher - crime dos crimes para o "establishment" da guerrilha "queer".

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