Torne-se perito

Há vida na Casa Branca depois de Karl Rove?

O "cérebro" de Bush saiu de cena, porque Bush já não precisa dele para uma estratégia de simples redução de danos. A sobrevivência política de Bush já não passa pelo génio daquele que é considerado como a figura mais influente da política norte-americana desde 2001

a Quando Karl Rove subiu ao palco no último jantar dos correspondentes de Washington, enquanto decorria a actuação da dupla cómica Sherwood & Mochrie, o movimento no gigantesco salão do hotel Hilton onde confraternizavam centenas de jornalistas, políticos e outros insiders da capital americana parou por segundos e uma espécie de desconforto tomou conta do ambiente - como geralmente acontece sempre que o maquiavélico e resguardado estratego político do Presidente George W. Bush faz notar a sua presença.Muito rígido e sério, e pouco elegante no inevitável smoking dos jantares de gala, Rove aceitou responder a algumas perguntas, fazendo jus à sua imagem de frieza, ironia e maldade ao dizer, por exemplo, no seu característico tom sibilino, que gastava o seu tempo livre a arrancar a cabeça dos passarinhos. A sala ria, preferindo pensar tratar-se de uma piada, mas a tensão era indisfarçável. Ali estava, realmente, um homem temível, capaz de intimidar uma multidão.
Até que os dois comediantes - famosos nos Estados Unidos pelo seu concurso de improvisação intitulado Whose Line Is It Anyway? - resolveram ensaiar uma música. Um rap. O conselheiro da Casa Branca só precisava de participar no refrão. Quando chegou a sua vez, Rove não só repetiu a sua deixa - I"m MC Rove - em todos os sotaques e timbres possíveis, como acompanhou toda a música com uma dança onde abundavam os saltos e outras contorções.
No salão, o nervoso miudinho desvanecia-se em incontroláveis gargalhadas. A cena era tão hilariante quanto surpreendente, patética e inesperada. Foi a primeira vez que Washington viu Karl Rove, a eminência parda da Administração, o "cérebro" de Bush, o supremo estratego político, cair do seu pedestal: ali, desengonçado e ridículo, era tão "humano" como os restantes, um homem que canta (mal), dança (pior), conta anedotas, janta com os amigos...
O génio desistiu?
No dia seguinte, nas redacções, nos escritórios de advogados e lobbyistas, nos gabinetes do Congresso e seguramente em todos os edifícios federais da capital americana não houve ninguém que não tivesse entrado no YouTube para ver e rever as imagens de Rove transformado em rapper.
Pois na passada segunda-feira, depois do Wall Street Journal ter anunciado em manchete que Karl Rove apresentara a demissão e deixaria a Casa Branca antes do fim do mês de Agosto, as televisões foram logo recuperar essas mesmas imagens. Em Março, ninguém tinha percebido que Rove já não era intocável, imbatível, infalível - os democratas tinham alcançado uma vitória retumbante nas eleições intercalares para o Congresso; a progressão dos ataques e da violência interconfessional no Iraque alimentavam o antagonismo da opinião pública contra a Administração; a popularidade do Presidente caíra para o nível mais baixo de sempre.
E agora é por de mais evidente. Karl Rove tinha falhado, espectacularmente, e era incapaz de ultrapassar o seu fracasso. A sua estrela apagara-se. O seu poder esvaía-se. A sua ambiciosa visão para Bush e o Partido Republicano era, afinal, impossível: o plano para o mais vasto realinhamento da política americana, através de uma estável e duradoura maioria conservadora nos três ramos do governo, não passava de uma ilusão.
Menorizado pela derrota, perseguido pelos seus métodos pouco ortodoxos e acossado pelo suposto envolvimento em sucessivos escândalos, não lhe restavam muitas alternativas para além da demissão. Mas curiosamente nunca ninguém acreditou (nunca ninguém imaginou!) que o mais valioso e leal colaborador do Presidente Bush atirasse a toalha e desistisse. Não é esse o seu feitio. O Rove dos bons velhos tempos - diabolizado pelos opositores como o responsável por tudo o que corre mal ("do furacão Katrina ao divórcio de Britney Spears") - era combativo, temerário, arrogante, desafiador, optimista. Como concordavam amigos e inimigos, genial.
Os anos do poder
Foi com essa aura que Rove chegou a Washington, há seis anos e meio. O consultor político responsável pela eleição e reeleição de George W. Bush como governador do Texas e pela expansão do Partido Republicano num estado tradicionalmente democrata, acabara de obter uma das mais sofridas vitórias eleitorais da história dos Estados Unidos.
Bush, seu amigo de mais de três décadas (os dois conheceram-se no início dos anos 70, quando Rove dava os primeiros passos como consultor ao serviço do Partido Republicano), premiou-o justamente levando-o para a Administração. Em 2004, Rove conhecia o auge da sua glória: a reeleição de George W. Bush, com uma confortável maioria do voto popular, e a humilhação dos democratas foram integralmente creditadas ao responsável da sua campanha.
Na Casa Branca, não havia nada que Karl Rove não fizesse, nenhum assunto ou decisão em que não fosse envolvido. O seu cargo oficial era de vice chief of staff e conselheiro senior do Presidente, mas Rove liderava o gabinete de assuntos políticos, o gabinete de iniciativas estratégicas e o gabinete de relações externas da Administração. Durante estes anos, foi crescendo o "mito" de Rove como o grande "marionetista", o manipulador que punha em acção as diferentes personagens - Bush, Cheney, Rumsfeld, Rice, Gonzales, ...
O seu papel de conselheiro será recordado pela sua fama e infâmia. "Houve uma altura em que a sua influência parecia tão vasta e tão completa, que tanto os democratas como os republicanos simplesmente assumiam que a mão de Rove estava por detrás de tudo o que acontecia na política americana, bom ou mau", lembrava a revista Time.
"Desde o primeiro dia na Casa Branca, Karl Rove foi o grande maestro da estratégia. Ele era o principal conselheiro de Bush, o homem das certezas, que nunca via nuances ou subtilezas, que não não tinha escrúpulos ou hesitações e que perseguia ferozmente os críticos que levantassem a mínima dúvida sobre as políticas do Presidente", dizia a Newsweek.
A publicação lembra, por exemplo, a sua postura durante os dias complicados antes da invasão do Iraque. Aquela era essencialmente a guerra de Cheney, Rumsfeld e Wolfowitz, mas, como homem de bastidores, o amigo e conselheiro de Bush "desempenhou o papel mais importante de preparar o terreno e manipular os factos para vender a invasão à opinião pública".
Nem Merlin, nem Rasputine
Sobreviveu, porém, ao maior escândalo desse período. Numa tentativa de desacreditar os ataques do ex-embaixador Joseph Wilson, a Casa Branca montou uma campanha que passou pela divulgação pública da identidade da sua mulher, Valerie Plame, uma agente secreta da CIA (nos Estados Unidos, identificar um agente secreto é contra a lei). Depois de uma complexa e demorada investigação, só o chefe de gabinete de Dick Cheney foi punido: em tribunal, Lewis Scooter Libby (que entretanto recebeu um perdão presidencial) alegou estar a ser usado como bode expiatório para proteger Rove.
Como repetiram os comentadores até a exaustão, a saída de Karl Rove é um duro golpe para Bush. "O senhor Rove não é nem um Merlin nem um Rasputine, por muito que muitos liberais e jornalistas procurem descrevê-lo como tal. Ele é acima de tudo o homem de confiança de George W. Bush. O seu invulgar domínio e conhecimento da história, demografia e política [americana] fizeram dele uma força política formidável, e suspeitamos que são os seus sucessos mais do que os seus métodos que verdadeiramente enfurecem os seus críticos", escrevia em editorial o The Wall Street Journal.
Conseguirá o seu amigo George e respectiva Administração sobreviver sem ele?
"Bush e Rove foram conhecidos, depois colegas, depois inseparáveis. São 34 anos de camaradagem, confiança profunda, co-dependência. É difícil imaginá-los a seguir caminhos diferentes. Imagino que não vai ser nada fácil para nenhum dos dois", comentava Marc Ambinder, editor da revista Atlantic.
Contrariando os impulsos de Rove, para quem a melhor defesa sempre foi o ataque, a Administração vai passar a actuar com o pragmatismo necessário à obtenção de resultados, mesmo que para tal tenha de desistir dos planos grandiosos estabelecidos no início do mandato. Citando oficiais da Casa Branca sob o anonimato, o The New York Times sublinhava que, a 17 meses do termo do mandato, "a Administração já não tem tempo para ideias novas. Nem sequer muito tempo para conseguir avançar com algumas das propostas do Presidente que continuam penduradas".
"A cena final nos jardins da Casa Branca, com Rove a partir para sempre deixando o Presidente sozinho, teve o tom do final de uma era. Começa uma nova fase para a Presidência Bush, que nos seus meses finais vai ter de assumir uma postura mais defensiva perante a oposição do Congresso e da opinião pública", observava por sua vez o The Washington Post.
"A Casa Branca já começou a repudiar a visão que seria o legado de Rove. Sob a nova liderança de Joshua Bolten, a Administração mudou a sua estratégia para o Iraque da transformação para a contenção. Abandonou o seus esforços para reformar a política de imigração para se concentrar na promoção da segurança das fronteiras. As suas prioridades orçamentais resumem-se agora ao controlo da despesa. E todos os recursos legais foram reunidos para responder às múltiplas investigações lançadas pela maioria democrata no Congresso", enumerava a revista Time.
"Esta operação de limpeza em curso é determinada não por uma inflexão ideológica, mas por necessidade política", prossegue a Time. É o desesperado plano B que, espera-se na Casa Branca, permitirá ao republicanos regressar às vitórias. O jornal Boston Globe notava como o aparente percalço pode ser revertido numa oportunidade: "Este é o momento para os republicanos deixarem de confiar apenas nos seus apoiantes mais radicais e abrirem os seus horizontes aos independentes, que muito provavelmente serão os responsáveis pelo resultado da eleição de 2008."
O fim da revolução
Se os conservadores seguirem esse caminho, estarão a rejeitar definitivamente as tácticas de Rove, que revolucionou as regras das campanhas com uma estratégia pioneira que passava por explorar e atacar os pontos fortes (e não as fragilidades óbvias) do adversário e por concentrar todos os esforços para cativar e agradar às bases (mais importante do que atrair novos eleitores era garantir que os apoiantes comparecessem nas urnas no dia das eleições).
"Essa foi a nova arquitectura concebida por Rove. A política da divisão. O sucesso consegue-se através da união do nosso grupo e da luta sem tréguas contra o adversário. Ele conduziu esta estratégia com um nível de eficiência nunca visto", explica Wayne Slater, autor dos livros Bush"s Brain: How Karl Rove Made George W. Bush Presidential, The Architect: Karl Rove and the Dream of Absolute Power e Rove Exposed: How Bush"s Brain Fooled America.
"Ele inverteu a lógica eleitoral, porque compreendeu que podia ganhar politicamente, se intensificasse o apoio dos grupos republicanos mais conservadores. Por precisar de motivar a ala mais à direita, Bush nunca teve uma política que convencesse o centro - de Guantánamo à privatização da Segurança Social, ao casamento homossexual ou a investigação com células estaminais; que evitasse a polarização do país e que prevenisse a alienação das alianças externas", interpretava o The Washington Post no editorial sobre a despedida de Rove.
Segundo o Los Angeles Times, "as tácticas polarizadoras de Rove, e o uso abusivo do poder governamental com propósitos puramente políticos, acabariam por cair mal junto de um eleitorado que é fundamentalmente moderado e pragmático". Como resumia um analista republicano, Tony Fabrizio, "ele é sem dúvida um dos mais brilhantes operacionais políticos dos últimos 100 anos. Mas poucos homens são capazes de mudar a política para sempre".

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