Do esgoto à cozinha

Contrariando todas as regras do bom espectador de cinema, eis um conselho polémico para ver "Ratatui": leve comida. Vai precisar. O cinema de animação chegou à cozinha e a Pixar rendeu-se ao poder dos animais peludos, no momento em que foi comprada pela Disney, a casa que mais animais humanizou. É um filme sobre culinária, sobre a prevalência dos sonhos que comandam a vida e sobre ratos e ratazanas. Como? Sim, ratos e ratazanas numa cozinha. Numa cozinha de autor, de um restaurante famoso. Em Paris. E dá fome.

A Pixar, a Disney e Brad Bird, o realizador de "The Incredibles: Os Super-Heróis" que pegou no filme há ano e meio quando o projecto estava quase a diluir-se numa longuíssima "fase de desenvolvimento", sabiam que a história de Remy, o rato que sempre teve queda para a culinária e que idolatra um conhecido "chef" parisiense, Gusteau, estava cheia de armadilhas. E foi isso que tornou o filme, produzido por John Lasseter ("Carros", "Toy Story", "Vida de Insecto", da Pixar) e Brad Lewis ("Formiga Z", da Dreamworks), "numa história rica". "Parte do que torna o filme interessante é a estranha mistura de ingredientes que ele contém", admite Brad Bird, numa sessão de entrevistas com jornalistas europeus em Paris. "Ratatui" é mais um filme de animação deste Verão, mas é o que melhor explora as possibilidades abertas pela animação digital sem o tornar num produto artificial com toques de acrílico.

A comida de "Ratatui" - título do filme em Portugal, que adapta o nome do prato centenário francês "ratatouille" - dá mesmo vontade de comer. Tem uma qualidade quase foto-realista que conquistou a crítica e "chefs" de todo o mundo, a começar pelo criador do "ratatouille" de autor do filme, o "chef" Thomas Keller, do restaurante norte-americano French Laundry. Vítor Sobral, o embaixador-cozinheiro português de Ratatui, tem a certeza que o filme "vai dar uma ideia real do que é a cozinha ao público", porque "a maior parte das pessoas não sabe como funciona uma cozinha profissional".

Mas ver um roedor numa cozinha profissional é, mais do que um anti-clímax, "a morte para uma cozinha, mas uma cozinha também é morte para as ratazanas", constata Brad Bird. Há um conflito inerente, uma hostilidade entre o protagonista e o seu meio, entre Remy e a cozinha do restaurante mais procurado de Paris. A ideia do filme, que pode parecer uma cedência da Pixar ao esquema mais velho da animação (faz bonecos com animais, torna-os fofinhos e recolhe os dividendos), é afinal um labirinto que comercialmente se arriscava a não ter saída. Os miúdos gostam tanto de insectos quanto de dinossauros e a Pixar já tinha testado, com "Uma Vida de Insecto", essa fórmula. Depois veio o fenómeno "À Procura de Nemo" e a fama instantânea para os peixes-palhaço deste mundo. Agora, é a vez de ratos que, na verdade, são mesmo ratazanas. Não é o rato Mickey, é a ratazana Remy. ("Mouse" é um rato, em inglês, e "rat" é ratazana ou rato na versão praga).

"É um risco grande", confirma Lewis, o produtor, "porque as pessoas odeiam ratazanas, mas o que é bom é que tem havido muitas histórias sobre coisas ou pessoas que não são muito agradáveis à vista mas que, ao conhecermos, acabamos por nos apaixonar por elas, como o Homem Elefante". No filme, o rato Remy quer ser cozinheiro e responde ao apelo do seu mentor, Gusteau, que vê na televisão a dizer que "toda a gente pode cozinhar". Do campo a Paris é um tirinho e lá vai Remy, contra a vontade da sua família, pelo esgoto até à cozinha do restaurante de Gusteau - que na primeira versão do filme estava vivo e que na versão que agora chega aos cinemas está tão morto quanto um peru antes da ceia de Natal.

E se o realizador não é grande cozinheiro nem amante da "haute-cuisine", já o produtor Brad Lewis cozinha para a família na Califórnia e até tem como especialidade um prato não aconselhável a cardíacos: o Turduck. É um frango recheado dentro de um pato recheado dentro de um peru recheado, normalmente reservado às orgias alimentares do Natal. Lewis está orgulhoso de ter ajudado a cozinhar o "ratatouille" do filme com Thomas Keller. E John Lasseter, o produtor executivo que tem uma vinha, escolheu os vinhos referidos em "Ratatui".

A culinária é uma democracia e todos podem ser cozinheiros, reza a história. Até uma ratazana do campo, até um rapaz com problemas de timidez, desadequação social e coordenação de movimentos podem ser timoneiros no barco "gourmet". Até uma exímia cozinheira, a única nos bastidores de um dos maiores restaurantes de Paris, pode sonhar um dia ser valorizada como os seus pares masculinos. Lutar contra a discriminação de género, pela tolerância e pelo voluntarismo - são estas as mensagens do cinema de animação para o século XXI?

"É verdade, qualquer pessoa pode cozinhar", postula Vítor Sobral. "Mas cozinhar acima da média não é para qualquer pessoa, é para quem nasce com essa capacidade e a explora. E aí consegue-se fazer a diferença". O "chef" Vítor Sobral empresta a voz, numa única fala da versão portuguesa do filme, a um cliente enfastiado que não quer comer "foie-gras", mas a sua personagem favorita não é a sua, nem a de Remy (voz de Patton Oswalt na versão original, voz de Diogo Mesquita em português), nem a de Linguini (Lou Romano/Tiago Felizardo), o ajudante de cozinha trapalhão que se alia ao rato, nem a do "chef" maquinador Skinner (Ian Holm/José Wallenstein), que mais parece Tulius Detritus de Astérix em "A Zaragata". É mesmo Colette (Janeane Garofalo/Helena Montez), a mulher no meio de homens. Colette personifica "as dificuldades que as mulheres passam na cozinha", que são reais. A mulher cozinha em casa para a família há milénios, mas quando se profissionaliza, tem muito mais dificuldades de afirmação. A disponibilidade do quotidiano e a estratificação de "profissões para homens e profissões para mulheres" são os culpados, aos olhos de Vítor Sobral, que acredita que "se juntarmos cem mulheres numa casa e cem homens noutra, vamos conseguir retirar muito mais mulheres com melhor paladar do que os homens".

Quando Brad Bird chegou ao filme, que estava em desenvolvimento há seis anos na Pixar depois de ter sido proposto, como ideia em bruto, por Jan Pinkava, fez várias mudanças. Matou Gusteau, o "chef", e deu mais protagonismo a Colette. O maior problema foi rearranjar as linhas do argumento e ligar as personagens entre si. "Entrei nele como um mecânico abordaria um carro lindíssimo que não se conseguia conduzir. E à medida que o fui arranjando, apaixonei-me por ele."

Se a mensagem do filme é qualquer coisa como "segue os teus sonhos", o cicerone é uma ratazana mais fantasiada, azul e que caminha com as patas de trás, em contraste com a sua colónia e família, com mais feios, porcos e maus. Mas essa foi uma das poucas concessões permitidas pelo realizador e argumentista aos animadores, à Pixar e à Disney. Os roedores tinham de ser reais, com viagens ao esgoto e pilhagens q.b. à despensa, mas a ideia de que são sujos não convive placidamente com uma cozinha de restaurante, sob o risco de convocar os inspectores da ASAE. Essa "hostilidade" entre os dois mundos, como a descreve Bird, não podia ser mascarada e as soluções do filme para este dilema são do tipo realista para os adultos e encantador para as criancinhas.

É que a Pixar não faz filmes para crianças, e mesmo a Disney nunca disse que os seus eram só para gente com menos de 1,30 m. "Muitas pessoas pensam na Disney como uma contadora de histórias meiga. Mas se olharmos para os filmes que o Walt fez, há violência na "Ilha do Tesouro", há um rapaz que dispara na cara de um homem. Na altura, não se pensava "isto é apropriado para o grupo etário familiar?"", ridiculariza Bird, em falsetto. Pense-se em "Bambi" e na cena que tanto fez chorar um jovem Harrison Ford: a morte da mãe. "A Disney teve problemas com isso, porque a pequena Buffy, sentada ao lado da mãe no cinema, podia ficar traumatizada", recorda o realizador. "Detesto essa ideia que as crianças são tão frágeis e diminuídas que temos de as envolver em panos contra qualquer coisa que seja minimamente traumática."

Comida que diz "come-me"

Entrar no universo da culinária foi "como visitar a CIA", compara Brad Lewis. A equipa, desde os produtores ao realizador, visitou vários restaurantes de elite como o Tour d"Argent ou o Guy Savoy e sentiu estar a entrar num mundo de segredos. Observaram as cozinhas, a preparação dos alimentos, a separação das zonas entre quentes e frios, carnes e peixes, e tentaram reproduzir o meio em que os grandes "chefs" trabalham. O resultado foi uma cozinha, a do Gusteau"s, romântica e iluminada pelos reflexos do cobre.

O prato que deu o nome ao filme e que serviu de centro geodésico ao trabalho de todos, foi sugerido por Thomas Keller, o melhor chef dos EUA. "Ratatouille. Parece um guisado, não tem um grande ar", recorda John Lasseter em conversa com os jornalistas. Keller fez a sua versão de um "ratatouille". "Começou a cortar legumes do mesmo tamanho e cortou-os às fatias e começou a empilhá-los de forma alternada. E nós fotografámo-lo a fazê-lo e depois a prepará-lo com o molho e empratá-lo. Ficou com uma preparação muito elegante que nunca tinha sido vista".

Os animadores não tiveram a mesma sorte. Cabia-lhes retratar duas coisas essenciais ao filme que toda a gente já viu. Paris e comida. "Toda a gente tem uma opinião de como é Paris - associamo-la às nossas emoções, às pessoas com quem estivemos lá", explica Brad Lewis. Paris é ainda uma das cidades mais retratadas pelo cinema, desde "O Acossado" de Godard às ruas pavimentadas com croissants de "Team America: World Police", de Trey Parker e Matt Stone de South Park.

A equipa andou por Paris, dos esgotos às ruas mais conhecidas, e com os animadores encontraram uma solução a que se pode chamar "Paris very typical". "Deitámos fora edifícios modernos e adicionámos cúpulas e catedrais", e encheu-se a cidade de Citröen antigos, para que Paris parecesse Paris e não uma versão pós-globalização da capital francesa.

Já Mark Walsh e Dylan Brown, os supervisores de animação, passaram semanas com uma gaiola cheias de ratazanas no escritório para aprender tudo sobre elas. "São criaturas muito espertas e quanto mais tempo passamos com elas, percebemos melhor o seu comportamento e as suas personalidades", contou Mark Walsh, enquanto replicava os frémitos de um roedor. Foram eles que desenharam, depois moldaram em barro e depois fotografaram e digitalizaram os primeiros traços das personagens. Foi às mãos deles que Remy, que quer mudar, ficou azul e o resto das ratazanas, mais realistas, ganharam pêlo castanho.

Mas para a dupla de animação, e para o filme, a grande vitória é a comida. Há quem saia do cinema com fome, há quem não consiga distinguir se os alimentos são mesmo desenhados ou reais. "Toda a comida foi difícil de criar. O problema é que todos sabemos como é, vemo-la todos os dias, sabemos como é crua ou cozinhada", conta Dylan Brown. A cor, os diferentes níveis de preparação, tudo dificulta o trabalho dos animadores e seus programas, que são mais adequados a desenhar coisas com o Buzz Lightyear de "Toy Story" do que um prato com um "ratatouille" em torre numa cozinha velha e cheia de azulejos.

E isso obrigou a uma mudança de paradigma na forma de fazer animação computadorizada. Até aqui, neste contexto, a regra é associar saturação e brilho. "Tradicionalmente um tomate, para ser de um vermelho saturado, tinha de ser também vermelho brilhante. Mas no mundo real, as cores mais saturadas são as mais escuras e isto torna-se um problema quando tentamos comunicar suculência através de um meio que não se pode cheirar ou saborear. Não podemos ter um tomate vermelho e brilhante, porque parece de plástico", descreve Brown.

Para resolver o problema, foi o fim do cinzento. Para dar sombra e profundidade à imagem, adicionavam-lhe cinzento. Com "Ratatui", não há cinzento, há a mesma cor, mas com tonalidades mais escuras. "A saturação acontece agora nas cores mais escuras e não nas mais brilhantes, e é por isso que o filme tem um ar tão quente e exuberante. Mesmo nos exteriores, em Paris à noite, há um brilho quente que não parece artificial", explica Dylan Brown. Esse brilho quente só passa por uma das personagens, Anton Ego, o crítico gastronómico, no final. Sem se revelar muito, diga-se que Ego tem um momento proustiano ("Em Busca do Tempo Perdido" começou numa recordação que acometeu Marcel Proust quando comia uma madalena) e perde toda a pose fleumática. "Eu não tenho muito boa opinião dos críticos", diz Vítor Sobral entre a cozinha e a esplanada do seu restaurante em Lisboa. Mas há algo de irresistível no mau que não o é, pelo menos na versão original do filme. Quando a voz cava de Peter O"Toole perguntava, ainda nos estúdios "Why is it popular?", a verdade é que os animadores começaram logo a pedir "eu quero animar aquilo!".

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