Aposta nos biocombustíveis sairá cara aos mais pobres

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A produção de biocombustíveis pode levar à destruição das florestas tropicais DR

A euforia saiu à rua. Não há semana que passe que não se ouça falar dos biocombustíveis. Os anúncios de novos investimentos pululam. Mas, no meio deste mar de entusiasmos, os avisos de cautela estão a começar a ganhar pano. A aposta nos biocombustíveis sairá cara aos mais pobres.

Numa semana em que, a nível europeu, este foi o prato forte, a OCDE e as Nações Unidas juntaram-se para alertar: os preços das matérias-primas vão aumentar, e se os ricos conseguirão encaixar esse sobrecusto, o mesmo não se passará com os mais pobres.

O lema começa a ser "nem tanto ao mar nem tanto à terra". Todos concordam que os biocombustíveis poderão dar um importante contributo na redução dos gases de efeito de estufa. Mas com conta, peso e medida. Uma corrida desenfreada a este novo "ouro", desta feita verde, pode pôr em causa os objectivos que tenta servir, destruindo mais do que constrói.

São vários os senãos. Desde logo a destruição que pode causar sobre as florestas tropicais, estilhaçadas para que pujantes palmas vertam o seu óleo. Além do impacte sobre a biodiversidade, o balanço carbónico desta opção levanta muitas dúvidas, pois o carbono libertado pelo derrube das árvores pode não ser compensado pelo crescimento das novas plantas. Sobre a Amazónia, receia-se a ameaça da deslocação de outras culturas para dentro da floresta, empurradas pela conquista da cana.

Preços em causa

Mas outra questão se levanta. Segundo o relatório da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económicos) e da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) sobre as perspectivas da agricultura mundial na próxima década, divulgado na quarta-feira, pode-se verificar uma alta de preços para alguns produtos, com destaque para os cereais.

Analisando o que se passou até agora, a seca em alguns países produtores de cereais e a redução de excedentes devido à procura chinesa e à reforma da Política Agrícola Comum (PAC) explicam os recentes picos nos preços de algumas matérias-primas. "Mas, olhando para o longo prazo, as mudanças estruturais que estão a decorrer vão manter os preços altos para muitos produtos agrícolas na próxima década", diz o relatório. Que mudanças são estas? "A redução dos excedentes e um declínio dos subsídios à exportação contribuem para estas alteração, mas o mais importante é a crescente utilização de cereais, açúcar, oleaginosas e óleos vegetais para produzir substitutos para os combustíveis fósseis, isto é, etanol e biodiesel." O que levará a preços mais altos das culturas, afectando, por arrasto, a alimentação animal, o que se irá reflectir nos custos finais.

Indústria preocupada

Têm sido, aliás, os produtores de rações os que primeiro sofreram - e sofrem - o embate da corrida aos biocombustíveis. "A avaliar pelos preços das matérias-primas disponíveis para a nossa indústria neste início de Julho de 2007, com o milho a 200 euros por tonelada (152 em Julho de 2006), a cevada a 187 (contra 127), o trigo a 202 (137 em Julho de 2006) e o bagaço de soja a 234 (contra 178), creio que a conjuntura é extremamente perigosa e insustentável, tanto mais que as perspectivas não são de quebra de preços. O mercado é cada vez mais volátil, a conjuntura mais difícil e uma ameaça séria à sobrevivência da fileira pecuária em Portugal, cujos sectores (alimentos compostos, carnes e leite) são os mais importantes da indústria agro-alimentar", defende Jaime Piçarra, da IACA - Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais.

Esta aposta tem o seu lado positivo para muitos agricultores, tanto dos países ricos como dos pobres. Mas representa um custo acrescido para os países em desenvolvimento, que são sobretudo importadores, para os criadores de gado e para a indústria agro-alimentar. São as populações urbanas dos países pobres que mais sentirão o impacte, já que, nos países industrializados, o preço das matérias-primas tem cada vez menos peso no custo final. Segundo Loek Boonekamp, da OCDE, citado pela AFP, um aumento de 20 por cento nos produtos agrícolas de base traduzir-se-á numa subida de um por cento dos bens na prateleira do supermercado.

Segundo o relatório, na UE, a quantidade de oleaginosas usadas para biodiesel deve aumentar dos actuais dez milhões de toneladas para 21 milhões dentro de dez anos. Nos EUA, o etanol feito a partir do milho vai duplicar até 2016, enquanto, no Brasil, os 21 mil milhões de litros hoje produzidos saltarão para 44 mil milhões.

O relatório sublinha ainda que, na maior parte dos países temperados, a produção de etanol e biodiesel não é viável economicamente sem apoios públicos. O que significa que as decisões políticas que forem tomadas no curto prazo poderão modificar o cenário descrito no estudo. A introdução de novas tecnologias e o preço de petróleo são outras duas variáveis que também contribuem para que ainda persistam muitas incógnitas sobre o futuro deste novo mercado.

As perspectivas feitas pelas duas organizações para os próximos dez anos não se resumem aos biocombustíveis, apesar de estes terem um papel central no relatório. As previsões indicam que a procura de bens agrícolas vai continuar a aumentar nos países em desenvolvimento e nas economias emergentes, o que dará fôlego a maiores investimentos nas produções domésticas.

Por esta razão, os países de OCDE (os industrializados) devem perder produção e quotas na exportação para os países em desenvolvimento. O comércio entre países do Sul deve aumentar.

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