O charme obscuro da beleza

Manoel de Oliveira mantém um longo e complexo diálogo com o outro grande mestre ibérico do cinema, Luís Buñuel: em "A Caça" (1963) revisita o registo tragicómico de "Los Olvidados"; em "O Passado e o Presente" (1972) antecipa a "congelada" e transfiguradora comédia de costumes de "O Charme Discreto da Burguesia"; em "O Meu Caso" (1986) glosa, em registo patético e a partir de Régio, a dimensão sacrílego-religiosa do cineasta aragonês; em "A Caixa" (1994) ensaia uma visão irrisória do mundo, uma espécie de ópera dos pobres, confrontados com a sua marginalidade. Isto para além de outras rimas internas, discerníveis no "terror" operático de "Os Canibais" (1988) ou na abstracção alegorizante de "Party" (1996).

Agora, "Belle Toujours" assumese, explicitamente como uma homenagem a Buñuel e ao argumentista Jean-Claude Carrière, regressando, em filigrana, àspersonagens centrais de "Belle de Jour", quase quarenta anos depois, encenando não apenas o seuenvelhecimento, mas também uma espécie de duplicação distanciada e paródica do enunciado sadomasoquismodo original. Enunciação é o termo, uma vez queOliveira fica num território "neutro" de referências aos amores culposos de Séverine: resiste-se à citação, optando pela força da narrativa, num presente irónico e incómodo.

A abertura (também no sentido musical do termo) estabelece na estratégia do campo/contracampo, a dualidade do projecto: de um lado, o palco do Grande Auditório da Gulbenkian, a grande teatralidade "sinfónica" de Oliveira, do outro, a plateia de um teatro, abrindo para o espaço dominante, uma Paris algo estereotipada, com a Torre Eiffel e o seu raio de luz "laser", a estátuadourada de Joana d''Arc, a claustrofobia de um bar, ou a sala reservada, marca de uma "belle époque" eterna, para a ceia de reencontro entre os dois parceiros da cerimónia ritual, um jogo da verdade, interrompido pela suspensão ficcional.

Se Michel Piccoli, também já um "habitué" no universo oliveiriano, regressa à sua personagem dopassado, a "recusa", nunca inteiramente clarificada, de Catherine Deneuve em retomar a sua Séverine traz a "Belle Toujours" inesperadas fulgurações ecomplexidades: Bulle Ogier (presença inesquecível em "O Meu Caso") não possuirá o carisma de Deneuve, mas a sua prestação elide a possibilidade de considerar o filme como uma sequela; por outro lado,esta presença dupla (Deneuve/Ogier) não deixa de remeter, de forma transversa, para o artifício queBuñuel adoptou no seu "opus" derradeiro, "Esse Objecto Obscuro do Desejo" - duas actrizes para ummesmo papel, desdobramento e variação infinita sobre a feminilidade transgressiva.

No entanto, o que é verdadeiramente genial nesteespantoso divertimento é o modo como se constrói o "racconto", numa recatada versão de câmara,sem nunca pormenorizar, nem fazer depender o novo filme do anterior, com o quadro de nu, à vista, comovinheta de uma relação metamorfoseada, tudo encenado ao pormenor, com o criado do bar (Benedetto, de sua graça, encarnado, com graça, por Ricardo Trepa, "bendito" intermediário da narrativa cifrada) e as duas prostitutas, uma velha e uma nova( Júlia Buísel, de novo em destaque, e Leonor Baldaque, presença constante dos últimos Oliveiras), a formarem adequado coro. As conotações eróticas desta revisita nunca ultrapassam os limites de umarepresentação "falsa", como se "Belle Toujours" estivesse sempre a um passo de "Belle de Jour", nuncao transpondo, definitivamente: as personagens são as "mesmas" e outras, num jogo requintado de"trompe l''oeil", sublinhado pelos biombos e pelas cenas galantes do restaurante privado, em que decorrea ritual "última ceia".

Por isso, tudo parece decorrer num ápice de tempo, sem que se desvende o mistério pretextual darevisita: sabia ou não o marido das "traições" da mulher?. Enquanto resposta, Oliveira "falha"propositadamente o projecto, esgotando-se na tentativa e construindo uma gigantesca elipse, um exercício de estilo sobre a hipótese da comédia de costumes: numa ambiência surreal (a inesperada aparição do galo, por trás da porta, incorpora emplenitude o bestiário buñueliano e rima, por absurdo, com o grande plano do olho do cavalo da estátua de Joana d''Arc), o mundo "moral" deBuñuel cruza-se com o universo "amoral" do Lubitsch de "Angel"; "Belle Toujours" ultrapassa o objectivo primeiro da homenagem e esboça uma releitura integrada de uma comédia matrimonial impossível, porque a morte e o envelhecimento inexorável tomaramposse da acção e dos seus peões.

Esta impossibilidade, razão de ser e motor da acção, explana-se na sábia gestão do "timing"cinematográfico: nem mais um minuto do que o estritamente necessário, com a noção perfeita domomento em que se deve terminar a "cerimónia". Se o móbil é a beleza e a sua permanência titular, o tomdominante é o do prazer obscuro de a procurar nas formas fílmicas, nos medidos planos fixos ou nomagnífico pequeno "travelling" sobre a estátua de Joana d''Arc. Porque as personagens, perdidas num tempo, sem tempo, são também belíssimas peçasde uma estatuária intemporal, motivos que o grande cinema de Buñuel criou e que o grande cinema deOliveira recria.

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