Torne-se perito

Há uma doença que se chama síndrome das pernas inquietas

Os primeiros casos foram descritos em 1945, mas só em 2003 se estabeleceram os critérios internacionais para definir este problema que é neurológico

a Tem uma necessidade imperiosa de mexer as pernas, sobretudo à noite ou quando está sentado no cinema, para tentar aliviar um desconforto, um formigueiro e até dor? E sente um alívio quando mexe as pernas, mas acaba por tê-las tão inquietas que não dorme e passa o dia sonolento e cansado? Talvez tenha uma doença que se chama síndrome das pernas inquietas. Pouca gente a conhece, médicos incluídos, por isso ontem neurolo-
gistas do Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, procuraram divulgá-la. "Estas pessoas são aquelas que se sentam ao nosso lado no cinema e estão sempre a dar-nos pontapés", descreveu o neurologis-
ta Joaquim Ferreira, do IMM e do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. "O nome da doença não é feliz. É um bocadinho infantil, como se fosse uma doença de brincar."
Mas o que os doentes passam não é brincadeira. Andam anos às voltas com diagnósticos errados. Varizes nas pernas, artrite ou, por causa do
cansaço, problemas cardíacos. São encaminhados para cirurgiões vasculares, reumatologistas, cardiologistas; poucos vão para os médicos que acompanham esta doença, os neurologistas. "A doença está descrita nos textos médicos. Mas não tem sido ensinada na faculdade", justificou Joaquim Ferreira.
Foi o neurologista sueco Karl Ekbom quem descreveu os primeiros 53 casos em 1945, embora os primeiros relatos, de um médico britânico, remontem ao século XVII. Os critérios internacionais de diagnóstico só surgiram em 2003. "A doença, como a definimos, tem quatro anos", disse Joaquim Ferreira. "O problema não está nas pernas. A causa é cerebral."
A história de Elisabete Silvestre não é uma excepção. Tem 70 anos, debateu-se durante 40 com as suas pernas inquietas até que em Janeiro, finalmente, alguém lhas conseguiu parar. "Não era capaz de estar muito tempo com as pernas paradas. Foi-se agravando até que, por fim, já não tinha uma noite descansada. Era doloroso", contou Elisabete Silvestre. "Ia para a cama e, meia hora depois, começava a sentir as pernas como se estivessem ligadas a uma ficha eléctrica. Iam para o ar com uma intensidade tal... Era automático."
Arranjou truques para tentar domá-las. Molhava-as no chuveiro com água fria ou passeava-se pela casa. "Ia para a cozinha e toca a comer o que aparecia pela frente. E de manhã adormecia, por exaustão."
Queixou-se a muitos médicos. Quem lhe disse o que tinha foi o que lhe tratou as varizes, há mais de dez anos: ""A senhora tem as pernas inquietas", o que achei um bocado estranho." Referiu o diagnóstico a outros médicos ("não acreditavam"), até que um lhe sugeriu ir ao neurologista. E foi tratada por Joaquim Ferreira.
O fármaco que toma, o ropinirole, usado para a doença de Parkinson, é o único vendido em Portugal com indicações específicas para a síndrome das pernas inquietas (a Agência Europeia do Medicamento aprovou outro, que não está cá à venda).
O que mudou? "Tudo. As primeiras noites foram incríveis. Dormi toda a noite. Foram anos a dormir mal", disse. "Fiz as pazes com as minhas pernas. Eram minhas inimigas."
Não se sabe com exactidão quantas pessoas têm síndrome das pernas inquietas. Mas os estudos noutros países (não há nenhum em Portugal) indicam que atingirá cerca de dez por cento da população. "Diria que um milhão de portugueses tem esta doença", referiu o neurologista Joaquim Ferreira. "Nem todos precisam de cuidados médicos, porque o desconforto é ocasional [uma vez por mês ou numa situação específica, como uma viagem]. Três por cento dos doentes têm formas graves, que justificam tratamento. Não é uma doença rara." Neste caso, afectará 30 mil portugueses que todas as noites, ou quase, têm as pernas inquietas. A causa não está determinada, mas sabe-se que a dopamina, um mensageiro químico do cérebro, e a falta de ferro estão envolvidos. Não há tratamento que a evite, nem cura. Mas os fármacos para a doença de Parkinson, na qual a dopamina é crucial, atacam os sintomas. Atinge mais as mulheres e, com a idade, os sintomas pioram. T.F.

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