Botas para que vos quero

O Ogre que se prepare porque a concorrência vai aumentar. Como se os heróis das salas ao lado já não bastassem, também o Gato das Botas vai miar no seu próprio fi lme. Amigos, amigos. Negócio a dobrar - diz-se na estreia do terceiro capítulo de "Shrek".

Quando Jeffrey Katzenberg, um dos patrões da Dreamworks, abordou António Banderas para participar em "Shrek 2", o actor espanhol ficou surpreendido. Nunca lhe tinha passado pela cabeça que fosse uma escolha óbvia para emprestar a voz a um desenho animado produzido por um estúdio norte-americano. Logo ele que tinha chegado aos EUA com muita vontade de trabalhar mas sem saber articular uma frase em inglês. Ao fim de vários anos de esforço e dedicação, a barreira da língua foi ultrapassada mas o sotaque castelhano resistiu, inquebrável. O que, para o caso, até veio a calhar. A personagem anexa ao convite de Katzenberg era o Gato das Botas mas numa versão diferente daquela que o francês Charles Perrault criou no final do século XVII. O felino animado manteria as botas mas também teria uma espada à cintura e, mais importante, o temperamento de um Casanova. Ou seja: uma criatura improvável mas, por outro lado, coerente com o mundo fantástico de Shrek, o mesmo onde acontecem todos os contos de fadas embora não exactamente da forma como estão escritos nos contos para crianças. "Se me convidam é porque o público americano reconhece e aceita a minha voz", conclui António Banderas numa suite do Dorchester Hotel com vista para um domingo ameno de Junho.

A verdade é que a voz, ou melhor, o sotaque latino foi apenas um dos argumentos que pesou na escolha do actor. Houve outros que o próprio reconhece quando o Ípsilon introduz a questão dos pontos de contacto entre o desenho animado e quem lhe dá voz. "Haverá alguns, não tanto comigo mas com algumas personagens que já interpretei". O Zorro, para começar. "Sim, a espada e o chapéu não enganam. Essa relação é evidente e é também uma boa oportunidade que esta profissão me dá para me rir de mim próprio. Isso é saudável".

Quer então dizer que Banderas, o espanhol que há 17 anos atravessou o Atlântico para ser actor num país cuja língua desconhecia, não se leva muito a sério? Quer. "O sentido de humor equivale à ironia e a ironia equivale à inteligência. Há que ver assim as coisas até porque vivemos num mundo confuso e violento. Se pudermos divertir as pessoas... Eu que sou um contador de histórias, sinto-me orgulhoso quando isso acontece. Parece-me bonito". E, no que à saga Shrek diz respeito, tem corrido da melhor maneira. Aproveitando a estreia do terceiro capítulo nas salas, a Dreamworks Animation promete, desde já, um filme do Gato das Botas que é assim promovido a estrela da companhia. "Vai sair entre o 4º e o 5º filme [da série Shrek]", anuncia Jeffrey Katzenberg. "Vamos ver como ele era em criança e como se transformou naquele matador de ogres que conhecemos no ''Shrek 2''". O argumento está escrito mas Banderas ainda não o leu.

Esta é ainda a fase do orgulho e da surpresa, uma vez mais. "Quando comecei este trabalho, achei que era para um filme só. Mas, de repente, o gato conquistou as pessoas em todo o mundo e foi o próprio estúdio que disse logo que a personagem devia ser desenvolvida. Não tanto nos filmes do Shrek, porque esses já têm um protagonista, mas no seu próprio filme. Vou desenvolvê-lo muito mais. Vamos ver o que acontece..."

Em 2010, se tudo correr como está planeado. Rei morto, ogre posto? Tudo acabou bem em "Shrek 2" mas nem tudo começa bem em "Shrek O Terceiro". Quando Shrek (Mike Myers) e Fiona (Cameron Diaz), já casados, se preparam para regressar à casa do pântano e, aí sim, viver felizes para sempre, a tragédia abate-se sobre o Reino de Bué-Bué Longe. O rei sapo, pai de Fiona (John Cleese), morre entre nenúfares mas não sem antes pedir ao genro que assuma o seu lugar porque é assim que deve ser.

Missão inoportuna e indesejada - percebe-se no esgar de Shrek. Alternativa? Só uma: passar a responsabilidade para um primo de Fiona que é nem mais nem menos que o Rei Artur em idade escolar e com voz de Justin Timberlake. "Lembro-me de ter 7 ou 8 anos e brincar sozinho no quintal com um pau a fazer de espada e eu próprio a fazer de Rei Artur", revela o músico na conferência de imprensa que juntou o núcleo duro do filme um dia depois das entrevistas individuais.

A recordação remete para uma infância no estado do Tennessee onde o futebol era tudo e, por causa disso, quem gostava de outras coisas (a música, no caso de Justin) era olhado de lado. Bem vistas as coisas, o jovem Artie vive a mesma angústia adolescente no liceu onde Shrek, o Gato das Botas e o Burro (Eddie Murphy) o vão encontrar. Timberlake é um dos novos membros da família Shrek e, tal como Banderas, foi escolhido por duas razões concretas. "Procurámos alguém que fosse popular porque isso ajuda", reconhece o produtor Aron Warner, "mas também quisemos alguém que fosse realmente engraçado para nos ajudar a construir a personagem. Vimo-lo no [programa de televisão] Saturday Night Live e calculámos que fosse boa aposta". Sentido de humor não lhe falta. Quando se apercebe que alguns dos colegas trocam recados nas suas costas enquanto responde aos jornalistas, não hesita no disparo: "Malditas estrelas de cinema!" Na busca da nova liderança para o reino de Bué-Bué Longe, Shrek e os fiéis companheiros cruzam-se com figuras saídas de histórias infantis, tantas quanto a imaginação dos argumentistas permitiu juntar na mesma aventura.

É assim que, numa floresta remota, avistamos o mágico Merlin (com a voz de Eric Idle, o segundo Monty Phyton a juntar-se ao grupo depois de John Cleese) ou identificamos o capitão Gancho (Ian McShane) no bar onde o Princípe Encantado (Rupert Everett) recruta aliados para um assalto ao poder. Na segurança aparente do castelo, Fiona faz-se acompanhar pela Cinderela, Bela Adormecida, Branca de Neve e Rapunzel, um séquito delicado que, não parecendo, mete respeito. Legenda de Cameron Diaz ao Ípsilon: "Desta vez, ela quase comanda a história a partir do momento em que convence aquelas princesas sem responsabilidades que é preciso tomar a iniciativa quando se quer que alguma coisa aconteça.

É uma óptima mensagem não só para as raparigas mas também para os rapazes". Anjos de Fiona?! "Sim, é engraçado isso. Estes cineastas são perspicazes na forma como misturam as referências". Foi propositado, então? "Tenho a certeza que eles não fazem muitas coisas por acaso". Contas feitas, há 8 personagens novas em "Shrek O Terceiro", cada uma com um universo próprio mas reinventado. O que não significa que a mistura tenha sido linear. Terá mesmo havido necessidade de cortar várias cenas para evitar que uma nova versão da lenda do rei Artur se sobrepusesse a tudo o resto. "Foi difícil equilibrar a história" - reconhece o realizador Chris Miller - "porque era preciso garantir que todas as personagens tivessem tempo de antena mas sem esquecer que estávamos num filme do Shrek. Tudo aponta para ele". E, desta vez, ainda mais porque a nova aventura inclui três filhotes.

Na frente tecnológica, (também) há novidades que reflectem três anos de melhoramentos nas ferramentas da animação por computador. O produtor Aron Warner assinala avanços na credibilidade desse mundo estilizado. "Se compararmos os três filmes, verificamos uma evolução evidente. O sistema de animação facial tornou-se mais complexo, tal como a roupa. [Já é possível movimentar] camadas sobre camadas. O cabelo é mais fácil de trabalhar. O efeito da atmosfera e da luz [também]". Chris Miller completa: "No fundo, refinamos o visual para criar a sensação de que estamos a entrar numa fotografia". O segredo é verde. "Não é por acaso que Shrek já vai na terceira aventura com toda a pompa e circunstância.

O primeiro filme, estreado em 2001, facturou cerca de 500 milhões de dólares, conquistou aplausos da crítica e ainda somou vários prémios, incluindo o Óscar de Melhor Filme Animado. "Shrek 2", a primeira sequela, não chegou ao Óscar mas dobrou os resultados de bilheteira, validando o empenho no "franchise" que ainda está para durar. Quem diria, ironiza Mike Myers, o actor que dá voz ao ogre verde. "Quando o Jeffrey Katzenberg veio ter comigo pela primeira vez, disse-me que tinha uma ideia para um filme animado e que gostava que eu participasse. Admiro-o tanto que aceitei logo. Disse-me entretanto que o filme se chamava ''Shrek''... O pior título possível, respondi, sugerindo que era melhor mudar. Mas ninguém me deu ouvidos. E ainda bem!" O orgulho é evidente. Myers chama-lhe dádiva porque nota a preocupação de passar sempre uma mensagem, de contar bem a história e de melhorar a animação, factores determinantes para o fenómeno global em que Shrek se transformou. Mas não os únicos. "Provavelmente, vai rir-se de mim" - diz Katzenberg a meio de um batido de chocolate - "mas creio que todos nós temos um pouco de ogre. Essa é razão pela qual creio que as pessoas se ligaram tanto a esta personagem de forma tão poderosa e profunda". Aron Warner concorda: "Ele é a pessoa que, por vezes, também somos mas provavelmente não admitimos que somos. E diz coisas que, por vezes, gostaríamos de dizer mas não temos coragem de dizer.

Para alem do mais, todas as personagens são engraçadas e originais. É como ir a uma boa festa onde há sempre qualquer coisa interessante para ver ou alguém interessante com quem conversar". Myke Myers prefere pôr tudo em perspectiva: "Fala-se muito da diferença entre filmes europeus e americanos. E diz-se que os americanos são mais espectaculares e que os europeus têm mais densidade. Mas todos devem ter as duas coisas. Até o famoso realizador russo Eisenstein falou disso, sendo ele um admirador dos filmes americanos e um defensor dos filmes europeus. Se houver espectáculo sem sentido ou uma história sem espectáculo, a experiência não satisfaz. O que é fantástico no caso do Shrek é que há espectáculo com sentido". Se a esse espectáculo juntarmos a paródia recorrente e um humor que tanto apela às crianças como aos pais, está encontrada a fórmula do sucesso. "É muito interessante redefinir certos aspectos da cultura pop da nossa sociedade", considera Cameron Diaz. "Creio que o Shrek faz isso aos contos de fadas na medida em que é uma versão actualizada das histórias que fomos ouvindo enquanto crescemos". E muitas vezes com músicas que ficaram no ouvido como é o caso de "Live and Let Die", de Paul McCartney, que serve de banda sonora a um dos momentos memoráveis deste terceiro capítulo. Na vida como na fantasia Nos próximos seis anos, o universo Shrek vai dar origem a mais 2 aventuras e não mais que 2. Jeffrey Katzenberg é peremptório: "No total, são apenas 5 capítulos"; sobre as histórias que restam, adianta apenas que "vão revelar muito sobre o Shrek, explicando como ele chegou onde chegou. Os últimos capítulos foram a oportunidade de revelar e, de certa forma, completar a Fiona. Os próximos dois filmes vão completar o Shrek".

Sejam quais forem as aventuras que estão para vir, é de esperar que acompanhem o envelhecimento natural do herói, tal como aconteceu até agora. Se no primeiro filme o ogre aprendeu a gostar de si próprio, no segundo aprendeu a ser marido e agora, no terceiro, aprende a ser chefe de família. "No fundo, é assim a vida. Há diferentes ritos de passagem", resume Mike Myers que sempre compreendeu a personagem. "Creio que todos os actores cómicos têm pouca autoestima. Essa jornada de auto-conhecimento é qualquer coisa com a qual me identifico completamente".

Rupert Everett diz na conferência de imprensa que também se identifica com o seu Princípe Encantado mas num tom diferente. "Quando estava a fazer ''dinner theatre'', senti que devia ser protagonista de grandes filmes". Solta-se a gargalhada geral. "Bom, não neste caso". Para evitar o esquecimento mas sobretudo para capitalizar o negócio, antes de "Shrek 4" e do filme sobre o Gato das Botas, há um especial de Natal para estrear em televisão no final deste ano. "Shrek the Halls" vai continuar o terceiro filme com uma mini-história da mesma maneira que "Shrek 4 - D" continuou o primeiro.

Mas nem só de ogres & companhia se fazem as próximas apostas da Dreamworks Animation. No início do Novembro, chega "Bee Movie", outra aventura animada mas ainda mais personalizada que "Shrek" porque se trata de um projecto de Jerry Seinfeld. O actor não só escreveu a história, como produziu o filme e ainda dá voz ao protagonista, uma abelha que processa a Humanidade por apropriação indevida... do mel.

Katzenberg fala já num dos "filmes animados mais originais alguma vez foram feitos porque é de alguém que vem de fora da animação mas tem um currículo fenomenal como contador de histórias e humorista". Para o caso de haver dúvidas sobre isso, Seinfeld tratou de desfazê-las no último Festival de Cannes quando se deu ao trabalho de vestir um fato de abelha insuflável para sobrevoar a Croisette. A imprensa fez eco da ousadia e da projecção das primeiras cenas mas, na altura, ainda ninguém sabia que Banderas também vai ter o seu filme animado. Por enquanto, o Gato das Botas pode miar descansado porque é dele que se fala. Pelo menos, enquanto a abelha não mostra o ferrão de uma vez por todas.

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