Torne-se perito

Abaixo o niilismo, o infinito é nosso

Nada mais de grande pode acontecer. Façamos o menos possível. Não passemos dos limites. E continuemos a votar. Isto é o niilismo democrático, contra o qual o filósofo Mehdi Belhaj Kacem se bate. É um outsider. A sua fase romântica acabou num filme de Philippe Garrel,
com um amor que o deixou sem corpo

a Foi com João César Monteiro, "um dos poetas mais importantes dos últimos 30 anos", que Mehdi Belhaj Kacem começou a sua conferência na Gulbenkian, integrada no ciclo O Estado do Mundo. Era um radioso fim de tarde de sábado e a plateia estava mais que composta, apesar de Kacem, 34 anos, ser, de certa forma, o oposto do conferencista que abriu o ciclo, Marc Ferro.
É jovem, nunca ensinou na universidade, não é uma celebridade, tem um passado punk e situacionista, experimentou mais ou menos tudo, incluindo ser o protagonista do filme Sauvage Innocence (2001), do cineasta francês Philippe Garrel, sem nunca deixar de escrever compulsivamente. Primeiro romances, e, nos últimos dez anos, filosofia. Discípulo do filósofo de esquerda Alain Badiou, vai publicar em breve um trabalho sobre o niilismo, tema central da conferência na Gulbenkian.
Filho de um tunisino e de uma francesa, vive em França desde a adolescência.
PÚBLICO - O que é que estudou?
Mehdi Belhaj Kacem - Tenho o liceu. Comecei por escrever livros de literatura aos 17 e aos 23 anos escrevi o meu primeiro livro de filosofia. Na verdade sou um clochard.
O primeiro romance que escreveu chamava-se Cancer.
Aos 17. Publiquei-o aos 20. E aos 23 decidi fazer uma viragem, fazer filosofia. E como sou muito trabalhador...
Fechou-se a escrever.
É verdade que a maior parte dos filósofos são universitários. Mas eu não fui à universidade.
O que tem uma relação com a sua liberdade, é um estrangeiro ao sistema. Mas foi deliberado?
Eu queria ter uma vida de rebelde, fazer a festa, escrever. Depois veio a vontade de fazer filosofia, justamente com Nietzsche. Nessa altura eu pensava que a filosofia era mais subversiva que a literatura. Hoje não estou nada certo disso. Mas aos 23 anos achava que a literatura não era suficientemente subversiva.
Não lamento ter seguido a filosofia. Acho que era feita para mim. Eu era demasiado doentio para fazer um curso, mas a filosofia era inelutável. Aconteceu de maneira original, não me tornei universitário. Também tem a ver com um temperamento jusqu"au-boutiste [de ir ao extremo] - agora já não. Com um romantismo.
Como é que as coisas se passaram? Escolhia sozinho o que ler?
É ser um autodidacta. Os meus primeiros livros de teoria eram muito, muito selvagens, com coisas que pareciam um bocado loucas a muitos especialistas das universidades. Mas a outros, os melhores, como [Jacques] Derrida ou [Alain] Badiou, o meu trabalho parecia prometedor.
Mas com universidade ou não, Derrida, Badiou, Deleuze eram pessoas de grande liberdade. A liberdade obtém-se de uma maneira ou de outra. Eu obtive-a de maneira um pouco marginal. Não é que lamente, mas hoje em dia fazia-me bem ter um salário.
Como vive?
Trabalho muito. Trabalho todo o tempo no meu canto.
Livros, dos artigos, das conferências?
Sim. Recusei grandes emissões de televisão que fazem com que o livro se venda muito bem, o que me traria dinheiro. Mas sou rigoroso, o meu trabalho é difícil e não faço coisas nos media de que não tenho vontade. Portanto, consigo viver de forma proletária, mas não sou rico, isso é certo. Há prós e contras. Agora penso em arranjar um trabalho, aos 34 anos começa a impor-se. Mas estou muito feliz pela liberdade, pela exigência que compensa os sacrifícios.
E que preço paga nas universidades? Como é olhado?
Com muita inveja [ri-se] - como é para um jornal português posso dizê-lo. Há um ressentimento violento dos jovens universitários.
Dos jovens?
Sim, os velhos estão-se nas tintas. São os jovens. Há muita inveja.
É difícil de imaginar outro filósofo que pudesse, por exemplo, ser protagonista de um filme de Philippe Garrel. Que efeito tem isto no seu trabalho como filósofo?
Dá acesso a experiências muito diferentes. No cinema aprendemos coisas sobre o amor, a libido, que nem a filosofia, a psicanálise, a poesia, a música podem trazer. É verdade que é raro um filósofo actor, houve escritores actores, como [Antonin] Artaud.
Reflectiu muito sobre o corpo nos livros. No cinema tratava-se de dar o seu corpo?
Isso foi há três anos, agora estou muito no espírito. Estou verdadeiramente a tornar-me um filósofo no sentido banal. Desde há três anos não tenho corpo. Neste momento, estou a descobrir um, pouco a pouco, uma outra educação que uma charmosa dama aceitou fazer na minha pessoa. Eu não tinha corpo e ela chegou e disse: "Putain, é preciso que encontres um corpo."
Mas o que diz faz-me pensar num texto de Deleuze em que ele diz que o cinema de Garrel é: "Dêem-me um corpo." É preciso que eu o encontre. Na época, eu tinha um corpo, que Garrel tomou, e pus a minha vida lá dentro. Era um pouco cinema-realidade.
Fazia um pouco de Philippe Garrel, mesmo.
Era uma mistura. Garrel, [Leos] Carax, eu, Antonin Artaud, também...
Quando diz que esse corpo acabou, acabou naquele texto que escreveu...
Sobre o niilismo?
Não. L"essence n de l"amour.
O que se passava antes é que eu escrevia muito com o meu corpo. O corpo está sempre lá. O que estou a tentar fazer agora é uma filosofia menos poetizante, mais clássica - mas não para repetir o que já foi dito, se não, não valia a pena.
L"essence n... misturava géneros. Eu estava muito apaixonado pela actriz com quem tinha trabalhado no filme [Julia Faure]. Era esse espírito um pouco vanguardista, experimental, de dizer a obra de arte total. O cinema, a poesia, mas também a escrita. Um texto com diversos ângulos sobre a história daquele filme.
É filosofia? É um regresso à literatura?
Faço filosofia, e isso sente-se nesse texto. Mas é uma carta de amor.
Havia uma primeira versão com vocabulário filosófico duro, e a rapariga em questão não a compreendeu. Foi preciso reescrevê-la para ela. Escrevi-a noutra língua. É verdadeiramente uma carta de amor que ousei tornar pública, sendo que já tínhamos sido [os dois] muito expostos com o filme. Portanto, era a última linha do romantismo da juventude, do lado punk, do lado rebelde, transgressor.
Se hoje vivesse a mesma coisa teria muito cuidado. Havia muita ingenuidade. Como Garrel, como [João César] Monteiro, também eu estou bastante fora da sociedade. E pensei que nos podíamos expor sem pagar o preço. Evidentemente é muito, muito perigoso.
Há poucos anos dizia que a experiência era o mais importante, mais que a literatura. O que procura hoje, acima de tudo, continua a ser a experiência?
Não. Não é a fase actual do meu trabalho. Faço especulações de ordem mais geral. Uma postura filosófica muito mais clássica. Tenho vontade de outras coisas.
Levei essa experimentação temerária ao limite. E depois pensei que precisava de saber onde estava, indo ao fundo dos problemas. O fundo na política, no amor - essa parte não resolvi, jamais, é a característica do amor. E hoje o amor alimenta o meu trabalho mas ao nível do universal. Agora não passo pela singularidade da minha experiência.
É uma postura mais clássica, de que terei mais necessidade. Como outros filósofos com percurso universitário, aos 35, 40 anos, podem querer um pouco mais de experiência.
A vitória de Sarkozy confirma a sua tese sobre o niilismo democrático?
Era inelutável. Há muitas coisas que agora estão claras. É normal que acabe por se impor esta ideologia simbolizada pelos "novos filósofos" ou [Michel] Houellebecq. Dominou tudo nos últimos 30 anos. Forma uma ideologia redonda e completa, encarnada por Sarkozy.
As raízes do niilismo democrático são francesas?
Há um niilismo democrático francês, sim. Não estar orgulhoso da revolução porque é o terror; da comuna porque não podemos dar o poder aos operários, vimos no que isso deu; do Maio de 68, que foi o horror - era um dos slogans do presidente; mesmo a resistência.... Logo, não resta grande coisa. O Gulag, a Shoa, Israel e a Palestina - é o que resta. O assunto central em França é Israel e a Palestina. Não há nada que se discuta mais.
O pior é a negação francesa da evidência.
Chama-lhe psicose: a convicção de que nada mais de grande pode acontecer.
Sim. E isso mistura tudo: a revolta nos subúrbios franceses é um pogrom...
Foi o que [o ensaísta] Alain Finkielkraut chegou a dizer.
Estamos numa espécie de delírio de vocabulário, que não é somente perigoso. Sobretudo a esquerda não quer ver isto, mas somos o estado mais policiado da Europa. Os slogans são os negros, os árabes...
Quem é Sarkozy?
O responsável disto. A encarnação. Um político muito hábil, produto de 30 anos de sistema. Sarkozy sintetizou muito bem o niilismo democrático. Vai racializar a política. Acredita no eugenismo, tem propostas racistas. É este o nosso presidente. E estamos na negação. A França não tem palavras corajosas para dizer a verdade do que se está a fabricar há anos. Era precisa uma coragem suicidária para dizer o que realmente se passa.
O niilismo democrático é só a França?
A Itália é um grande laboratório. Leio muito [Giorgio] Agamben. Mas o que me interessa é a responsabilidade histórica da França, se a França abdica do que representa há dois séculos. É esse o perigo Sarkozy. Ele diz "Viva a França", vai fazer um ministério da identidade nacional. Mas a identidade não é aquilo de que fala Sarkozy - substância nacional, racial, eugénica. Segundo Sarkozy, seremos pedófilos de nascença. Alguém que explique o que será uma criança pedófila... Mas ninguém lhe pergunta.
Estamos na negação total. São sempre compromissos para tentar fazer recuar a catástrofe e não dizemos jamais a verdade.
A metafísica de extrema-esquerda é uma ideia de quem?
Sou eu que lhe chamo assim. Os dois maiores filósofos do século XX, os dois metafísicos mais elaborados, são Heidegger e Badiou. Um é de extrema-direita, Heidegger, o outro de extrema-esquerda, Badiou.
A metafísica de extrema-esquerda tem a ver com um ideal igualitário. A igualdade face ao Ser. Em Heidegger - em Nietzsche ainda menos -, não somos iguais face ao Ser. Na metafísica de extrema-esquerda, e é uma verdadeira metafísica, muito mais do que uma vontade do autor, somos todos iguais diante do Ser.
Deus está morto, e, como diz, o infinito é para nós. É isso?
Voilà. O Ser a priori é para todos.
Mas o que quer dizer o infinito é para nós?
Em pequenos seminários e conferências, toda a gente me diz: "É a primeira vez que nos sentimos verdadeiramente ateus." Badiou dá uma intelegibilidade e evidência ao conceito de infinito que jamais vimos na história da filosofia. É a primeira vez na história da filosofia que o conceito de infinito é arrancado a toda a possibilidade teológica. Perguntei-me muitas vezes o que seria ter uma discussão com alguém religioso.
Exacto. Essa é uma resposta para ateístas. Como é que fala com quem tem fé?
Sim, sim, é terrível. É por isso que o desenvolvimento desta ideia é uma coisa de longo fôlego. Há dezenas de milhões, centenas de milhões de pessoas que acreditam em Deus. Nietzsche disse que Deus tinha desaparecido mas que a sua sombra continuaria a reinar por muito tempo.
Não tenho assim uma pulsão totalitária "Agora vou explicar Badiou à terra inteira." Seria Orwell. Mas é incrível que nunca tenhamos pensado nisso. É um conceito que toda a gente pode compreender, o infinito absoluto.
O meu trabalho [por publicar] é percorrer a história da filosofia metafisíca para explicar como Deus é uma invenção muito circunstanciada. Um conceito que é irracional hoje, mas que quando foi inventado era muito racional, porque a terra era plana, não sabíamos o que havia no céu, Deus determinava-o. Hoje sabemos que não é assim. E há este conceito de habitarmos um mundo que não tem princípio nem fim.
O niilismo democrático é: "Façamos o menos possível, terás menos chatices se não ultrapassares os limites." Sobretudo, é preciso não passar o limite. O que mata muito a democracia é o consenso. É preciso não ser muito mordaz, não dizer muito mal. É muito kantiano.
Na metafísica de extrema-esquerda não há desculpa para não fazermos o máximo do que podemos fazer.

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