Tintoretto de raspão

e raspão, mesmo para quem tem olhos tão lentos como os meus, é certo exagero. Em duas tardes, para trás e para diante, para diante e para trás, não saí do que gosto de chamar a Grande Galeria do Prado, onde até 13 de Maio estão expostas quarenta e nove telas de Jacopo Robusti, mais conhecido por Tintoretto (1518-1594), diz-se que devido à profissão do pai, tintureiro estabelecido em Veneza.A exposição inaugurou-se a 30 de Janeiro e não está previsto que viaje mais, nessas itinerâncias actualmente tão habituais. O leitor ou já a viu (foi mais lesto do que eu) ou tem ainda uma semana para a ver, sabendo-se embora que as piores alturas para ver exposições destas são o principio e o fim. Como em tantas outras coisas de resto.
Deu muito brado e muito mais brado estará para dar. Ao invés de outros nomes (Tiziano, Caravaggio, Rubens, Rembrandt, Vermeer, para me ficar pelos gigantes e pelos séculos XVI e XVII) Tintoretto não acontece ano sim ano não, ou pelo menos não acontece com pendular periodicidade. Como o Prado espalha aos quatro ventos, data de Outubro de 1937 a última grande exposição monográfica dedicada ao pintor. Reinava Mussolini e o cenário foi o Palazzo Pesaro, em Veneza. Já lá vão 70 anos.
É certo que, em 1994, no quarto centenário da morte do pintor, se fez uma exposição dele, que começou em Veneza, na Accademia e continuou no Kunsthistorisches Museum de Viena. Mas era uma exposição temática e os retratos eram o tema. Ora o melhor de Tintoretto não está neles, embora a mostra do Prado abra e feche com dois retratos geniais. Mas são dois auto-retratos: um, dos anos de juventude, ainda não tinha 30 anos, é grandíloquo e latente; o outro terá sido pintado 40 anos depois e o velho de barbas e cabelos brancos perdeu a terribilitá de antanho. Mas, como escreveu Marcantonio Michiel, é o retrato de um homem que viu muito, mas que não pára de se interrogar e de nos interrogar. Esses auto-retratos, de proporções equilibradas, numa pintura onde a desmedida é a "desregra", são uma das muitas apostas ganhas por Miguel Falomir, o comissário da exposição. Nas duas extremidades da galeria não se vêem nem se olham, mas olham-nos e vêem-nos, antes do antes e depois do depois, com a mesma inflexibilidade com que ele a ele próprio se olha, já que ambos são auto-retratos pintados ao espelho, algo que Dürer ou Giorgione já tinham feito, mas não se fazia muito ou não se fazia quase nada nos tempos de Tintoretto.
Tintoretto: amigos e inimigos lhe louvaram ou lhe denegriram o ego, esse que, desde novíssimo, ele ostentou com uma superbia que alguns compararam à de Picasso. Como escreveu o seu biógrafo Carlo Ridolfi, citado por Andrew Butterfield na New York Review of Books de há uns dias, nunca deixou de pensar nos modos e meios que o podiam tornar conhecido como o mais ousado pintor do mundo. Até Vasari, que nunca gostou dele, lhe reconheceu "il più terribile cervello che abbia avuto mai la pittura".

diante, que se faz tarde e eu não me posso perder nos auto-retratos. Dois ou três parágrafos para realçar ainda mais a singularidade da exposição.
Logo na primeira sala, com um croquis de um mapa de Veneza, se nos apontam todas as igrejas, palácios e scuolas de Veneza onde o génio de Tintoretto mais brilha. E não há voltas a dar-lhe. Por mais que esta exposição seja um triunfo - e é-o - a grandeza de Tintoretto só pode ser bem aprendida em Veneza. Eu lembro-me. Era 1967, chovia muito na Praça de São Marcos, o Outono desenhava-se em Veneza, quando eu visitei, pela primeira vez, a Scuola Grande di San Rocco, onde Tintoretto trabalhou de 1564 a 1587. Quando cheguei à Sala do Albergo e a essa Crucificação que se diz ser o maior quadro do mundo, eu já estava mais convertido que o S. Paulo de Caravaggio. "Les chromies acidulées et exagerées du Tintoret" de que falou Huysmans, que alucinaram El Greco. Eu lembro-me que vinha de Roma (primeira visita a Roma) e disse a toda a gente que a Sistina era o San Rocco dos pobres. Pecado a descontar-me? É bem certo, mas, hoje ainda, não faço distinção de grandezas.
Esse Tintoretto, o Tintoretto de San Rocco, de San Trovaso, da Salute, de Santo Stefano, da Madonna dell"Orto, do Palácio das Doges, etc., etc., etc. não o encontram no Prado, nem o poderão jamais encontrar em parte alguma senão em Veneza.
Muito lá sobreviveu, porque Veneza foi das cidades mais poupadas deste nosso mundo. Mas, sobretudo, porque devido à desmedida dimensão das suas telas, elas não são transportáveis.
Mas, quando se começa a caminhar na galeria do Prado, através dos grandes períodos da obra do pintor, temos não só o privilegio único e ímpar de poder ver em diálogo obras separadas há 400 anos, como, muito mais importante, descobrimos como este pintor virou tudo às avessas, o que explica os preconceitos negativos que vêm de Vasari ou de Boschini (que lhe chamou charlatão) até Roberto Longhi que dele fugiu como o diabo da cruz, falando do "expressionismo demoníaco" de um pintor astuto mas desleixado.
Tão grande ou maior do que Tiziano, que não o quis por discípulo? A Carracci (Ludovico) escreveu Carracci (Annibale): "Já vi Tintorettos tão bons como Tizianos e já vi Tintorettos piores que Tintoretto". "É uma boa síntese, mas ainda melhor é a que Paolo Pino confiou ao próprio Tintoretto em 1547: "Quando houver alguém que junte a qualidade de desenho de Miguel Ângelo à cor de Tiziano, então nascerá o supremo deus da pintura." Tintoretto esforçou-se toda a vida por o ser, e, se alguém esteve próximo de o conseguir, foi ele.

cima falei do milagre da reunificação, milagre que é o signo que presidiu a esta exposição quase impossível e tão milagrosamente certeira.Segundo a lenda, aí por 1547-1549, Tintoretto pintou para a Scuola del Santíssimo Sacramento de San Marccolo (Veneza, evidentemente) duas telas enormes: uma figurava O Lava-Pés; a outra a Última Ceia. Esta última, por lá ficou em San Marccolo até hoje; O Lava-Pés foi comprado por Filipe IV de Espanha e está no Prado desde que o Prado, Prado é. É uma tela de 5 metros de comprido por 2 de altura e com uma das mais assombrosas utilizações de perspectiva que imaginar se possam. Se o espectador se coloca em frente ao quadro, onde alguns apóstolos se sentam a uma mesa, perguntar-se-á que cena é aquela. Se se colocar do lado esquerdo, tem diante uma cena quase cómica, com um apóstolo a tirar as calças de outro. Mas se o vir do lado direito, tem a perspectiva correcta (perspectiva lateral) pois vê Jesus a lavar os pés a S. Pedro enquanto S. João deita a água na celha.
A lateralidade é a situação que implica a coerência da representação, deixando as figuras de parecerem desconexas como sucede na visão frontal. Depois, é como sempre em Tintoretto, um nunca acabar de surpresas, desde o fundo à Vitrúvio, ao cão de Bassano e à estranhíssima figura crística que está sentada no chão do lado esquerdo e quase podia ser Cristo, se Cristo não estivesse no outro ângulo, ajoelhado no lava-pés.
Pelo contrário, A Última Ceia, a tela maior da exposição, das que veio de fora, é uma obra que assume total frontalidade. Mas que fazem a Fé e a Caridade nos dois extremos do quadro? E porque razão Judas, sentado entre os dois únicos bancos vazios da mesa, tem na cabeça a mesma auréola de todos os outros apóstolos? Donde e porquê a presença do gato, junto à Caridade ou à Caridade Terrena, que outros vêem nessas figuras acrescentadas às da representação tradicional da Ceia?
Na Scuola de San Marccolo, dizia Velázquez, a Última Ceia ocupava a parede do fundo, enquanto o Lava-Pés estava na parede lateral. A exposição recupera essas posições iniciais e, introduz nelas, esse movimento vibrante que foi o segredo maior de Tintoretto.

ibração e segredo que atingem quanto a mim o ponto extremo noutra Última Ceia, vinda essa da Igreja de San Trovaso.Parece que foi um quadro que suscitou reacções muito negativas. Burckhardt falava de uma "singular baixeza", reparando na extrema desordem e pobreza do encenado. Ruskin indignou-se com a figura do apóstolo que pega do chão uma garrafa de vinho para continuar a beber. Mais uma vez, nesta Ceia convulsa (livros pelo chão, cadeiras derrubadas) dois mistérios sem razão aparente; um rapazinho que está em pé, à esquerda do quadro e não se percebe que relação tem com ele. Duas figuras brancas, semi-estátuas, semi-fantasmas, na profundidade de campo, atrás de Cristo.
Mas essa vibração e esse segredo não são o apanágio das cenas religiosas de Tintoretto. São-no por igual das cenas mitológicas, quer seja a Susana e os Velhos de Viena, quer a Vénus, Vulcano e Marte de Munique, quer o Tarquínio e Lucrécia de Chicago. Erotismo? Volúpia? Inegavelmente. Mas nunca onde é evidente que estejam ou sejam. Sempre nos pequenos rumores, nas cores destoantes, nos pormenores insólitos e nas perspectivas perversas.
Percebe-se então o sentido da obra e o sentido da exposição. Mostrar o que não se vê, vendo o que não se mostra.

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