Alice no país dos horrores

Talvez seja preciso tratar "INLAND EMPIRE" esquecendo a mais clássica das preocupações de quem vai ao cinema, seja um crítico seja um espectador comum. Ponhamos a coisa assim: é um filme - ou, se estivermos em dia de pudor exacerbado, um "objecto" - que exibe uma majestosa independência face ao que qualquer espectador possa dele pensar. Gostou? Não gostou? Poucos filmes se posicionam desta maneira perante esse básico escrutínio: se gostou ou não gostou, é irrelevante, caro espectador (diz o filme), o importante é ter estado aqui. Quando acorda de manhã depois de uma noite de sonhos agitados (continua a dizer o filme) fica a pensar nos sonhos, não fica a tentar decidir se gostou deles - sonhou-os, e foi tudo.

"INLAND EMPIRE" (dizemos nós) oferece-se ao espectador exactamente dessa maneira: um sonho agitado, uma viagem num comboio-fantasma, uma tripalucinógenea. A contemplação é indissociável da sua própria experiência, e esta tem tanto de intelectual como de sensorial. Parece uma verdade de La Palisse, pois parece, já que teoricamente todos os filmes são assim; só que (eufemismo) nem todos os filmes conduzem essa verdade aos extremos a que "INLAND EMPIRE" conduz. E esses extremos, numcerto sentido, são o ponto mais aproximado a que Lynch chegou (provavelmente desde "Eraserhead")daquela que é a sua natureza, o seu ADN de cineasta: a liberdade visionária e associativa dos surrealistas e vanguardistas doutras décadas, a rudeza labirinticamente material e conceptual dalgumexperimentalismo "underground", o gosto pelo dispositivo paradoxal e interpelador de algumas artesplásticas (mormente videográficas) modernas. Nisto tudo, o gosto do espectador é bastante irrelevante- já lá está, já se tornou "espectador", e a única coisa que se lhe pede é que aceite ou não aceite. Claro que, primado do cinema narrativo, muita da conversa sobre "INLAND EMPIRE" tem tendência acentrar-se na maior ou menor decifrabilidade da sua história, se é compreensível ou se não é compreensível. Compreensível é (pelo menos naquilo que tem para ser "compreendido"), e face a outrashistórias de Lynch não é nem mais nem menos bizarra. A narração é que, como é óbvio, não dá facilidades (mas em "Mulholland Drive" também não dava). Mas aí, é possível que estejamos próximos de uma espécie de "macguffin" teóricoestratégico. Consciente de que o espectador contemporâneo é uma criatura mimada desde o berço com historinhas muito bem contadas noprincípio, no meio e o no fim, Lynch sabe que para o pôr a ver o filme em vez de se limitar a seguir a história, esta tem que ser apagada, obscurecida, comprimida, fracturada - para que se torne claro,e talvez muito espectador de hoje o tenha descoberto com Lynch, que mesmo quando uma história é"escondida" pode continuar a existir um filme. Rouba-se a história ao espectador, e ele é obrigado a ver ofilme. Em parte, a sofisticação narrativa de Lynch é uma maneira (talvez a única maneira) de devolver o espectador a uma condição primitiva, e voltar a sentir o espanto e a alucinação sentidos pelosespectadores das primeiras sessões de cinema - que não se espantaram nem se alucinaram pelas históriasque lhes contavam, mas por outra coisa, e essa coisa é aquilo de que nos sentimos próximos em "INLANDEMPIRE". Mas chega de generalidades e vamos a três ou quatro coisas muito específicas sobre "INLAND EMPIRE". Já que falámos dela, a história, sem pormenorizar muito (porque, concedamos, há um certo gozo em "unir os pontinhos" e em encontrar o mapa certo dentro dela que não queremos retirar a ninguém).Passase em Los Angeles, cidade dada nalguns planos de exteriores num filme essencialmente de interiores, como convém a uma aventura mental. Envolve a rodagem de um filme ( Jeremy Irons é o realizador), "remake" de outro que anos antes começou a ser filmado sem que se chegasse ao fim - está-se portanto sob o signo da maldição, em terreno armadilhado. Esta variação, muito alusiva, sobre um "negativo" de Hollywood e das suas mitologias constitui-se, cada vez mais, como um "tema" na obra de Lynch. "INLAND EMPIRE", como já "Mulholland Drive" e antes dele "Estrada Perdida", tem um fundo que é uma espécie de encontro entre Kenneth Anger e James Ellroy, Hollywood feita Babilónia e DáliasNegras (sendo certo que a "mutilação", em facto ou emameaça, é um fantasma tremendamente lynchiano). Da"HollywoodBabylon" Lynch parte para uma história quetoca em várias temas e procedimentos habituaisnele: projecções, desdobramentos de personalidade (a "loucura" que não se reconhece, a "sanidade" que duvida de si, outra matéria bem lynchiana), vampirismos e possessões de origem inexplicada,golpes de rins cronológicos, num tom de conto de fadas virado do avesso onde abundam capuchinhosvermelhos e lobos maus (quando o capuchinho vermelho e o lobo mau não coexistem na mesma personagem). Depois, visões, "flashes", fragmentos de um"Rorschach" para que eventualmente só Lynch tem achave, e que aqui surgem exponenciados pela libérrimaestrutura de "Inland Empire" (às vezes irrita, sobretudo quando se gosta que um filme invente o seucondicionamento e as regras do seu jogo em vez de preferir praticar o vale-tudo). Há planos que parecem libertar-se dele, existirem por si e para si - serem "objectos" em si mesmos. É o Lynch "produtor de imagens" com rédea solta. O vídeoampara-lhe isso. O aspecto cru, pouco polido, curiosamente "realista" da imagem em video quando oposta à fotografia de cinema, joga a favor de umadimensão "experimental", cauciona e exponencia o ensaio do "inorgânico", salienta a "performance" e o artesanato. E o "gag", como quando um grupo demulheres se lança numa coreografia ao som de "Locomotion" (ah, Lynch, gozas com o espectador, Deus te abençoe)."INLAND EMPIRE" também é o reencontro com uma actriz, Laura Dern, heroína de "Blue Velvet" e "Wild at Heart". De certa maneira é um filme para ela, convertida numa espécie de musa. O que nos ajuda a explicar os coelhos: Lynch, feito Lewis Carroll pósfreudiano, conduzindo a sua Alice pelo país dos horrores.

Sugerir correcção
Comentar