Torne-se perito

Reaprender a falar e escrever após um acidente vascular cerebral

Um dia, de repente, tiveram um AVC, aos 45, aos 55, aos 60 anos. Deixaram de falar, ou de escrever, ou de compreender. Mas sílaba a sílaba, vão reaprendendo

a Maria de Jesus olha para o quadrado de papel com uma imagem de um amendoim. "Maçã!", diz. Leva a mão à boca, apercebendo-se do erro. "Amêndoa", diz outro dos cinco participantes na mesa-redonda. "Está quase...", incentiva a terapeuta. "Amendoim!", a resposta certa é logo saudada por Maria José: "Boa!"Maria de Jesus e Maria José estão num grupo de cinco pessoas numa aula de terapia da fala na Associação Nacional de Afásicos, à Portela, em Lisboa. Não são crianças: têm idades entre os 45 e os 60 anos. Mas estão a reaprender a falar, a ler e a escrever. A maioria ficou com afasia na sequência de um acidente vascular cerebral (AVC). Tinham empregos, em empresas, ministérios, eram gerentes, administrativos, costureiras. Já nenhum trabalha - vivem da reforma antecipada. Encontram-se quase todos os dias na sede da associação onde, para além de fazerem terapia, convivem.
A afasia pode afectar a compreensão, a fala, a escrita, a pronúncia, a nomeação das coisas. Um afásico pode chamar cão a uma cadeira, usando termos completamente díspares, pode usar uma palavra da mesma área, usando lápis quando quer dizer caneta, pode até lembrar-se de termos numa língua estrangeira (a zona do cérebro onde é "armazenada" a primeira língua é diferente da que comanda o uso de línguas estrangeiras). O afásico pode falar mas não compreender, pode compreender mas não escrever, pode ter dificuldades nos gestos, ou ter tudo isto ao mesmo tempo. Muitas vezes, as pessoas pensam que ele é surdo, que está bêbado ou que é maluco.
As aulas de terapia da fala fazem-se em dois grupos. Num são nomeados e pronunciados os quadradinhos de papel com imagens (um dia animais, outro dia alimentos). Esta é a aula de Maria de Jesus Pena, que era administrativa numa empresa, e de Maria José Matos, antiga gerente.
As sílabas são ditas aos solavancos, num esforço que não é só da língua e da boca, mas do corpo todo. Um movimento da cabeça ajuda, às vezes com mais força, a empurrar os sons cá para fora. Outras vezes, a despachar a palavra para ver se sai melhor. "Gmel", diz José Fonseca. Mas a terapeuta não se deixa enganar. "Não falta aí nada?", pergunta, obrigando o doente ao esforço: "Co-gu-me-lo."
Depois há pequenas dificuldades que parecem inultrapassáveis. O desenho mostra um par de cerejas. "Duas cereja", diz Maria José. "Mas são duas", diz a terapeuta. A doente entende. Mas o "s" não sai. "Duas cereja. Duas cereja", repete Maria de Jesus. Já Maria José não atina com a primeira sílaba de tomate. Sai-lhe "te", "te-mate". "Finja que é um fantasma, buuuuu...", incentiva a terapeuta. "buuu... tuuuu-mate".
No segundo grupo, mistura-se escrita e conversação e os afásicos tentam encontrar perguntas para respostas prévias. "De autocarro" é a resposta. "Vou para o Porto", arrisca um. "Isso não é uma pergunta, é uma resposta", contrapõe a terapeuta. "Vamos lá, o que eu posso perguntar para que me respondam: "De autocarro"?", insiste.
A resposta demora, às vezes é mais adequada, outras vezes menos.
"Não sabia nada, nada"
Maria José resume o que é ser afásica: "Não sabia nada, nada, isto, isto, isto", diz, a apontar para o braço, a mão, a mesa. "Agora já consigo estar aqui a falar e té té té", adianta. Maria José não consegue comunicar só com palavras, mas aprendeu estratégias de contornar a falha e é a mais faladora do grupo.
O pior? "Às vezes pensam que não entendemos", queixa-se Hermínia Mendes, 45 anos, dois filhos, que trabalhava numa loja que tem com o marido até ter o AVC. "Riem, acham que estamos a brincar."
A principal dificuldade de José Fonseca é a compreensão: fica alheado quando se fala com ele. Depois dispara algumas palavras, que nem sempre têm a ver com o contexto. A história do antigo funcionário do Ministério da Agricultura foi especialmente complicada, já que após o AVC "ele não percebia o que lhe tinha acontecido", conta a terapeuta, Mónica Kerr. Vivia com a mãe, que tem Alzheimer, mas não se lembrava de nada, portanto ela ainda ficou sozinha em casa algum tempo até que os serviços sociais se dessem conta da situação.
Já António Coelho leva cinco anos de recuperação, mas não consegue escrever nem falar. Percebe tudo e quer responder, fá-lo através de desenhos. Tem as palavras na cabeça, mas a boca e língua não obedecem quando se trata de as pôr cá fora, nem a mão consegue dar ordens à caneta para as escrever. Teve o AVC no Algarve, segundo o que desenha num papel. O que fazia antes? Um trabalho burocrático, percebe-se pelos traços. Administrador?, sugere a terapeuta. Não, mas era qualquer coisa semelhante. Coelho ainda quer especificar, mas desiste - é demasiado complicado. Depois sabemos que era director comercial de uma empresa.
Por Belmiro Santos é a mulher que fala. Está na casa dos 60 e há dois anos que teve dois AVC de seguida. Afectou-lhe a fala, a escrita e a capacidade de compreensão de frases complexas. O que fazia antes? Ela olha para ele. "Posso dizer?" Ele diz que sim com a cabeça. "Era jornalista", diz. A terapeuta explicará mais tarde que usa textos que ele escreveu para estimular a compreensão. Mas às vezes é preciso desmontar as frases complexas para que ele as entenda.

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