Dançando com a bola, o futebol como ballet

Hugo Viana,
o canhoto solitário

a O futebol é uma linguagem universal com vários dialectos corporais. Fabregas e Tamara Rojo vivem os dois em Londres. Espanhóis famosos na capital da Velha Albion. Ele é futebolista do Arsenal. Ela é primeira-bailarina do Royal Ballet. Parecem viver em mundos muito distantes. Futebol e dança. Mas estão estes dois universos assim tão separados? O que faz do futebol a sua linguagem universal é a expressão corporal dos seus intérpretes. Cada qual com o seu estilo. Quando Cristiano Ronaldo arranca, a sua cumplicidade em velocidade com a bola combina dança, força, técnica e instinto. Fabregas, mais cerebral, em vez da velocidade pura, esquiva-se ao choque. Dança mais com o pensamento do que com o instinto. Nunca tinha visto um espectáculo de ballet na sua vida. Tamara também nunca vira um treino de futebol. Quando o fazem, conhecendo balneários e diferentes equipamentos, entendem como esses mundos se tocam. Os dois baseiam todo o seu trabalho no mesmo instrumento corporal, os pés. O futebolista com chuteiras. A bailarina clássica com sapatilhas próprias. Em ambos os casos, desenhadas em modelos personalizados para os seus pés. Tamara treina nove horas por dia. Cesc, menos, hora e meia. Diferente, o tratamento das lesões. Para uma bailarina, partir o metatarso não é nada. Para um futebolista, afasta-o por meses. Rooney ia perdendo o Mundial por causa disso. Nessa altura, nos vestiários do Royal Ballet, conta Tamara que as bailarinas riam-se da gravidade dessa lesão.
Toda esta história faz-me viajar pelas belezas secretas do futebol. Mozart, Simply Red ou Pixies. Cada jogador terá sua banda sonora. Aí está a dança. Com a bola. O maior elogio que li sobre Cruyff foi quando o definiram como "Nureyev do futebol".
Há dias, conversando sobre Cristiano Ronaldo com figuras do nosso futebol, falou-se da forma estranha de ele correr. Com os pés meios para fora, quase como Chaplin jogando futebol em projecção ainda mais acelerada, como um pato gigante com bola. Faltou ensinar-lhe a correr quando miúdo para ser ainda melhor, ouvi. Estranho. Garrincha era o desequilíbrio perfeito a jogar futebol. Um enigma para quem ele nem devia poder andar, quanto mais correr e fintar. Era a negação do corpo de atleta. Mas ninguém fintava melhor do que ele.
Existe uma forma cientificamente correcta de correr ou dançar? Talvez, mas cada um fabrica a sua, cada um descobre a sua fórmula certa. Única. De forma selvagem. Não se trata aqui de movimentos tácticos ou cenográficos. Fala-se de dançar com a bola, onde os impulsos corporais devem fluir cruzados com o atrevimento individual.
Garrincha tinha o joelho esquerdo virado para fora e o direito virado para dentro. O médico Óscar Scaglietti opôs-se á operação: "Eu até recomendo uma cirurgia, mas só depois de abandonar o futebol. Antes disso, tal poderia comprometer seus dribles maravilhosos." Recordo a história e penso em Ronaldo. Ok, ensinem-no a correr, mas só depois de deixar de jogar. Agora, essa correcção podia comprometer o seu futebol maravilhoso.
a Hugo Almeida foge ao protótipo atlético do nosso futebol. Talvez por isso, mais até do que pelo seu valor concreto, pode ser um ponta-de-lança tão importante no futuro. Este tipo de jogador, contrário aos naturais cânones morfológicos de um país futebolístico, é um trunfo histórico difícil de encontrar. Em 66, Portugal teve Torres. Alto e esguio, ele também fugia ao típico jogador português "roda baixa". Isso fez dele, no entanto, com estilo desengonçado, o grande n.º 9 da geração dos "magriços".
A eterna crise de pontas-de-lança no nosso futebol, sina do futebol latino (um futebol de médios, chamam-lhe os críticos), pode ter encontrado, na era pós-Pauleta, uma boa solução no novo gigante luso. Hugo Almeida está hoje no futebol alemão. Ideal para o crescimento e maturação do seu estilo. No treino e no jogo. Aperfeiçoa movimentos e colmata a falta de uma escola de pontas-de-lança na nossa formação. Neste processo, descobre, primeiro, como ele próprio deve lidar com a sua diferença. Depois, como a fazer valer em campo.
a Face a uma equipa com jogadores como Cristiano Ronaldo e Quaresma, o natural é pensar a sua essência a partir da fantasia. É difícil, no entanto, dar bases a um colectivo partindo de fantasistas. A ordem requer mais cérebro. Algo que suporte e alimente essa magia. Portugal tem o mais difícil de encontrar no futebol actual. Fantasia com extremos. Factores em vias de extinção dos relvados.
Com Ronaldo, a fantasia surge emoldurada numa capacidade atlética invulgar para um jogador tão virtuoso. Em geral, os criativos costumam ser mais franzinos. Sem Figo, Portugal perdeu um jogador capaz, por si só, de unir, fantasia e ordem. Neste novo ciclo, um desafio, com a nova dupla mágica, é, partindo dessa qualidade fantasista, acrescentar sabedoria táctica ao jogo. Costuma ser o contrário, partir da disciplina para a fantasia. Para esse percurso inverso, entra o cérebro dos pensadores e dos operários. A batuta de Deco, o combate de Petit, a cultura de Moutinho. A sagrada união do bom futebol.
a Sem Deco, Portugal perde o seu maestro. Com bola ou sem bola. Não existe substituto para um jogador destes. A entrada de Hugo Viana representa, por si só, a entrada de outra ideia de jogo.
O ideal seria encontrar outro jogador para ocupar os mesmos espaços. Como será um jogador diferente, as dinâmicas individuais serão necessariamente distintas. O importante será manter os mesmos princípios colectivos de jogo. Vejo jogar Moutinho e, para encaixar no lugar de Deco, penso que precisa alterar uma coisa no seu jogo: correr menos. Saber travar e, com o passe, fazer a bola correr. Mais cérebro e menos pernas.
Outra opção seria Tiago, mas, ao pensar nele, pensa-se noutro ponto chave do onze: qual a melhor companhia para Petit? Pelas posições em que mais costumam jogar, seria Tiago, ficando Moutinho a 10.
Se pensarmos nas características de ambos, o inverso talvez faça mais sentido.
Moutinho pode ser uma espécie de Pirlo português. Tem tudo para isso. Visão de jogo, ocupação dos espaços, timing e precisão de passe. Tiago sabe ocupar posições mais avançadas. Não é explosivo, mas faz movimentos de ruptura atrás dos avançados. Tudo equações tácticas da selecção portuguesa.
É o único esquerdino da selecção. Tem futebol na cabeça e lê o jogo como um bom romance. Mas gosta sempre de o fazer devagar. O mundo e o futebol actual têm, no entanto, outras velocidades. Acelerações que fazem a diferença. O jogo de Hugo Viana raramente acompanha essas mudanças. Precisa sempre de um ritmo lento, excessivamente baixo até, para brilhar. O segredo poderia, então, passar pelo cínico baixar dos ritmos. Se ele próprio o conseguir fazer quando tiver a bola, salva o seu talento. Resta saber se consegue, ao mesmo tempo, manter o do colectivo activado.
1,90 metros de ponta-de-lança contra 1,96 de defesa central. Um choque de músculos no interior da área belga. Hugo Almeida contra Van Buyten. Dois jogadores em cujos pés a bola até parece mais pequena. Quando estão livres, com mais espaço, nota-se mais essa inestética relação com a bola. A agilidade corporal de ambos necessita de contacto físico para viver. Para Hugo Almeida, tal faz parte da essência do seu jogo. Tal como os golos. Uma meta para ser alcançada após vencer o duelo físico com o monstro da defesa belga.

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