Museu de Salazar: as falácias

Ao contrário do que dizem os apoiantes do museu, o projecto não teria qualquer impacte no desenvolvimento do concelho

Dizem os livros que falácia consiste em partir de uma afirmação falsa, intencionalmente, e, a partir dela, pretender retirar conclusões verdadeiras.A primeira falácia de alguns comentadores tem a ver com a intenção atribuída à União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) de ser contra qualquer museu sobre Salazar. Basta ler o que consta das posições assumidas (www.contraofascismo.net; http://salazarices.blogs.sapo.pt) para se percepcionar que nada é mais falso. Pessoas que viveram na própria pele, ou na dos seus familiares e amigos, a repressão, a clandestinidade, o exílio, as prisões, as torturas. Pessoas que coabitaram com o dia-a-
-dia do fascismo em todas as suas vertentes são (e têm-no sido) as primeiras interessadas numa análise histórica e científica desses 48 anos. Afirmar o contrário só por ignorância, má-fé ou desonestidade intelectual.
Argumentam os promotores e defensores do Museu de Salazar que não se trata de construir um "santuário" ou uma casa evocativa para honrar e homenagear Salazar. Sustentam que o que pretendem é um "centro de estudos" desse período da História de Portugal. Um museu "neutro", com "enquadramento" e "caução científica". Que garanta uma abordagem de Salazar não apologética mas crítica. Mostrando o que ele "fez de bom" e também "o que fez de mau". O povo costuma dizer que "a melhor prova do pudim é comê-lo". A prova de que a realidade se sobrepõe a bonitas "declarações de intenção" sobre aquilo que o museu poderia ou deveria vir a ser é aquilo em que ele já se tornou. A prática comprovou que o simples expressar público de uma opinião contrária ao referido projecto bastou para despertar os saudosistas e os defensores de uma ideologia condenada pela história: o fascismo.
A prova de que se trata de um projecto que os fascistas sabem que lhes pertence foi a mobilização dos neofascistas da "Frente Nacional" para Santa Comba Dão. Com tentativas de agressão, saudações hitlerianas, vivas a Salazar e à ditadura fascista, gritos de "fora os comunistas" e "vão para a Rússia" na arruaça. Sem que autarcas e responsáveis do PSD tirassem o sorriso dos lábios enquanto se passeavam na contramanifestação. Sem nada fazerem para contrariar insultos e ameaças, ou evitar as tentativas de agressão.
Em nenhum momento, a câmara local assumiu que o que quer construir possa ser um espaço museológico, ou um "centro de estudos", sobre o regime fascista e os sentimentos profundos e a longa resistência do povo português à ditadura de que Salazar foi o principal responsável.
E não o fez porque, obviamente, não se revê nos princípios constitucionais (e cientificamente aceitáveis) a este respeito e porque a conjuntura e o quadro de valores em que assenta o projecto excluem essa possibilidade.
A conjuntura é a da família, dos objectos pessoais, da casa, das terras, da rua, da aldeia, da paisagem, da árvore, do banco, do carro, da escola, do cemitério e da campa de Salazar. Os valores são o de "filho ilustre da terra", "o que fez de bom", "o que as pessoas querem ver". Estes são valores de identificação positiva e apologética, que excluem qualquer abordagem objectiva do regime. Acresce que, para quem não sabe, a Lei 64/78 está em vigor. Naquele espaço, conjuntura e quadro de valores sobreleva um peso "genético" brutal do salazarismo e/ou apologético de Salazar, que exclui que qualquer intervenção possa tornar o museu num instituto científico e objectivo.
Esclareça-se que o quadro internacional a este respeito não é favorável à abertura de santuários fascistas. Ao contrário do que têm procurado fazer crer os apoiantes do museu e apesar do ressurgimento da extrema-direita na Europa. Em Espanha, discute-se o encerramento do Vale dos Caídos, que foi construído pelos prisioneiros republicanos durante o franquismo, e têm sido apeadas estátuas e símbolos do fascismo. Na Alemanha, a tentativa de reconstruir a casa de campo de Hitler na Baviera foi liminarmente recusada para não se tornar um santuário nazi.
Do ponto de vista de Santa Comba Dão, ao contrário do que também dizem os apoiantes do museu, este projecto não teria qualquer impacte sensível no desenvolvimento do concelho. Talvez dois ou três postos de trabalho directos e é tudo. Quanto ao resto, o que é real é que obriga o orçamento municipal, por decisão da câmara (http://salazarices.blogs.sapo.pt), a pagar ao sobrinho de Salazar uma renda vitalícia, actualizável, de dois mil euros mensais. Mais de 350 mil euros em dez anos. Nada mau para uma "doação" de um pincel da barba, uns selos, embalagens de restaurador Olex e mais uns quantos objectos pessoais do ditador. Rico tacho! Santa Comba Dão merece seguramente melhor!
Especialista em sistemas de comunicação e informação

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