O exército das sombras

Paul Verhoeven entrou na indústria americana com o interessantíssimo "Robocop" (1987), depois de uma importante carreira na Holanda, marcando já dois dos seus traços estilísticos distintivos: por um lado, o gosto pelo excesso de representação, pelo "over the top", em filmes como "Delícias Turcas" (1973); e, por outro, a construção de um rigor histórico, na análise do período da II Guerra Mundial, entre a ocupação nazi e os meandros da resistência neerlandesa, como no excelente "O Soldado de Orange" (1977).

O seu regresso às origens, neste complexo "O Livro Negro", vem pegar neste empenhamento histórico ao traçar um belíssimo painel que desconstrói as contradições do movimento resistente, no final da guerra: pensado como um filme de aventuras e heroísmos contraditados, o filme investe a experiência americana do realizador no imenso cuidado posto na reconstituição, embora ao serviço de uma narrativa que dificilmente seria possível do outro lado do Atlântico.

Recusando facilidades maniqueístas, "O Livro Negro" aceita as regras de um "thriller", com uma primeira hora de concentração máxima, repleta de inversões de expectativas, mas envereda por um olhar "negro" sobre a personagem. A saga da jovem judia Rachel Stein, que vê a sua família assassinada, optando por transformar-se em falsa colaboracionista, numa estratégia de vingança e justiça "poética", expõe com rara clareza as pequenas cobardias quatidianas, as pequenas e as grandes traições, a cupidez humana, os diferentes mecanismos de uma sobrevivência difícil, em tempos de barbárie. Para tanto, não só discute o estatuto do resistente desinteressado, como o grau de vilania do exército ocupante, não hesitando em construir o SS humanizado de Ludwig Müntze (excelente composição de Sebastian Koch, o dramaturgo de "As vidas dos outros"), prova provada do modo como Verhoeven entende a complexidade das relações e dos sentimentos, em tempos de guerra.

Mesmo a marca "sionista" da narrativa enquadrante (o filme assume-se como um longo "flashback", a partir de um "kibbutz", em Israel, e a ele regressando numa suspenção que acentua os malifícios bélicos, quaisquer que sejão as circunstâncias), deve ler-se como mais uma vontade de ler a dimensão humana, em todas as suas implicações, sem se compadecer com primárias demagogias.

O que é extraordinário neste exercício rigoroso de dissecação dos sentimentos e das razões políticas para intervir e para morrer ao serviço de uma causa, é a sua capacidade para se interrogar sempre, para questionar, sem complacência, as profundezas do ser humano. Tudo isto com uma forte noção do espectáculo, um sentido do "timming" cinematográfico e o conhecimento das componentes de um género existente, porque facilmente assimilável pelos cordelinhos de um melodrama estereotipado. Em nenhum momento, Verhoeven cede às tentações do telefilme decorativo ou moralista, antes escolhendo o caminho mais difícil: encaixar as peripácias na verosimilhança de personagens frágeis e complexas, perdidas no teatro do mundo. Depois da aprendizagem na indústria, o cineasta vem provar que tem um olhar autoral próprio e que consegue conferir invulgar tensão dramática a um "pequeno" arremedo de filme-de-guerra, em constante risco de sobreexposição.

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