Os devoradores de livros

Trituram tesouros sem piedade. Alimentam-se de páginas de iconografia e livros raros. Mas há uma nova maneira de os exterminar. Por asfixia. O PÚBLICO assistiu

a O ambiente nos corredores do segundo piso da Biblioteca Nacional, em Lisboa, é de filme de ficção científica. Os corredores da ala de iconografia são corredores-fantasma, totalmente vazios. Foram esvaziados dos espólios e ocupados por bolhas de plástico ligadas a garrafas de gás e tubos, como doentes terminais. O som de fundo é como o de uma panela de pressão gigante. Sente-se que se entrou na cena do ET de Spielberg, quando a casa de Elliot fica envolta numa bolha de plástico, em quarentena, porque os pais descobriram que um ser extra-planetário andava a conviver às escondidas com as crianças.Aqui o ET tem um nome em latim. Chama-se Anthrenus verbasci. Também é conhecido por escaravelho da alcatifa. Mas há outras espécies que por ali gostam de fazer estragos. Um deles também se pode encontrar a destruir papel em nossas casas e tem o nome comum de peixinho-de-prata.
Este Anthrenus verbasci é muito temido apesar de ter apenas um milímetro ou dois. Na fase de larva, este insecto, cujas preferências alimentares vão para o têxtil, alimenta-se do que apanha. E o que há mais à mão, na Biblioteca Nacional, é papel. Muito papel: "Ele nem sequer é característico do papel. Os hábitos alimentares são o têxtil. Mas à falta dele alimenta-se do papel", diz Otília Santos, responsável pelo sector de conservação e preservação.
Os devoradores de livros foram ali detectados, em Outubro, nas armadilhas espalhadas pelas prateleiras da colecção de iconografia da Biblioteca Nacional. As armadilhas são pequenas caixinhas de papel, com cola, onde ficam colados os vilões que por ali passam. "Até osgas ficam aqui", diz a directora da biblioteca com uma armadilha na mão. Era preciso agir. E a decisão foi tomada em meados de Dezembro, envolvendo um orçamento de 50 mil euros que terá de ser alargado pelo menos a mais 30 mil a 40 mil para este ano. "É um processo caro porque implica muita mão-de-obra e é demorado", afirma Inês Cordeiro.
Alerta em Outubro
O expurgo vai durar até Maio, pelo menos, assegura Inês Cordeiro, para desespero dos leitores e investigadores, que não estão a gostar de se verem privados da consulta das obras. Os corredores da iconografia já estão todos vazios. Nas bolhas de plástico, primeiro fechadas em vácuo e depois injectadas com dióxido de carbono, estão já as centenas de caixas de cartão onde foram colocados todos os exemplares de iconografia. Algumas prateleiras não escaparam ao martírio. E até um chapéu-de-chuva se pode ver dentro de uma das câmaras de anóxia - é assim que se chama a este processo que mata os bichinhos extraindo todo o oxigénio do ambiente dentro do plástico insuflado.
Ao fundo começa a ala dos reservados, paredes-meias com a iconografia, o coração dos tesouros da Biblioteca Nacional; um quarto do espólio já está também indisponível e encaixotado para ser desinfestado. Ali ninguém pode entrar, frisa Inês Cordeiro. As medidas de segurança da biblioteca, reforçadas depois de em 2005 terem desaparecido da iconografia 35 desenhos de Cruzeiro Seixas, não permitem pessoas estranhas.
Entre as obras dos reservados já empacotadas estão das mais valiosas colecções da biblioteca: a de códices alcobacenses, uma das mais valiosas da Europa, pergaminhos, parte da biblioteca pombalina e códices iluminados. "É muita coisa e uma fatia muito importante do nosso espólio. São obras preciosíssimas. Não têm preço", afirma Inês Cordeiro, que não sabe precisar ao certo de quantas centenas de obras se está a falar.
Luísa Cabral, directora do serviço de conservação e especialista nesta área, explica que estes expurgos sempre existiram e que são um procedimento obrigatório e comum em todas as bibliotecas do mundo. Mas até há cerca de dez anos eram realizados na Biblioteca Nacional por um processo químico.
Expurgo ecológico
"Uma vez por ano a biblioteca fechava três a quatro dias por ano, na Primavera, e fazia-se uma desinfestação através de químicos. Mas os resíduos que esses químicos, alguns deles já proibidos, deixavam nos livros eram prejudiciais a quem manuseava os livros. E não eram muito bons para o papel. Em 1997 foi a última vez que utilizámos esse método", explica.
Sobre o método novo agora usado para eliminarem os bichinhos dos espólios, Luísa Cabral garante: "Virámos verdes completamente. É um método ecológico, totalmente inócuo para as pessoas e para os livros". O mesmo é frisado por Jorge Mamede, o responsável da empresa contratada para proceder ao expurgo da Biblioteca Nacional, que também já realizou uma intervenção na casa forte da Torre do Tombo e no Museu de Ciência da Universidade de Lisboa. "Os métodos de desinfestação por anóxia utilizam gases neutros, neste caso o dióxido de carbono. Não interagem quimicamente com os objectos. E a desinfestação não é provocada pelo gás mas pela ausência de oxigénio", explica sobre um método que começou a ser aplicado no mundo inteiro há 15 anos em instituições como a Biblioteca Nacional de Singapura ou a British Library.
Questionada sobre a eficácia de uma desinfestação que incide apenas em parte do espólio da biblioteca, correndo-se o risco de haver contaminação das obras ainda não intervencionadas e de tudo voltar à estaca zero, Inês Cordeiro obserba: "Em bom rigor seria necessário intervencionar tudo. Mas é uma tarefa ciclópica. Nunca haveria orçamento. E não podemos inviabilizar a colecção toda ao mesmo tempo. Temos de adoptar uma estratégia de prioridades".
E Luísa Cabral acrescenta, em forma de metáfora: "Ganhamos um certo calo, como os médicos nos hospitais. Quando não se pode acudir a tudo porque se tem um número limitado de camas, não se faz mais do que aquilo que é possível."

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