Cavaco almoça cabritinho no café onde Pessoa se escondeu debaixo da mesa

Não foi o mais importante café da cidade, mas é o que resta dos tempos em que conspirações e intrigas se faziam com uma bica à frente

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O café do Terreiro do Paço faz hoje anos Malte Jaeger/PÚBLICO

O episódio é relatado por Almada Negreiros, que naquele dia chuvoso tinha combinado encontrar-se com Fernando Pessoa num dos seus poisos habituais, o lisboeta café Martinho da Arcada, na Praça do Comércio.

"Mal tinha começado a conversar com ele quando, subitamente, rebenta uma tremenda e memorável tempestade. Chuva e mais chuva barulhenta, vento, relâmpagos, trovões, um não parar. Não me contive e vim à porta. Gritei para fora: "Vivam os raios! Viva o vento! Viva a chuva!". Quando voltei à mesa ele já não estava lá. Mas estava um pé debaixo da mesa. Era ele todo. Puxei-o, estava pálido como um defunto transparente".

A crer na olisipógrafa Marina Tavares Dias, nem sequer foi no Martinho da Arcada, cujo 225º aniversário se comemora hoje, com a presença de Cavaco Silva e outros notáveis, que se reuniram as várias gerações literárias, dos românticos aos opositores do Estado Novo. É verdade que Pessoa, que tinha terror de trovoadas e não gostava que lhe tirassem fotografias, ali se costumava encharcar de cafés e bagaços, que às vezes acompanhava com uns ovos estrelados com queijo ou com uma sopa juliana. A sala onde se sentava, e que ainda hoje mantém a mesa de tampo de mármore cinzento onde espalhava maços de papéis, acolheu também muitos boémios, conspiradores e gente das letras e das artes, com destaque para os modernistas da revista Orpheu. Mas os primeiros tempos do Martinho da Arcada contam uma história diferente de que Cavaco Silva nem suspeitará quando, hoje, se sentar à mesa do restaurante com a sua mulher Maria e um minhoto que fez fortuna no Brasil, actual proprietário da casa, a apreciar um cabritinho no forno antecedido por pastéis de bacalhau, peixinhos da horta e lavagante.

A clientela refinada nem sempre foi apanágio do local. Casa de jogo clandestino suspeita ainda por cima de dar guarida a liberais e jacobinos - à época uma acusação relativamente vulgar -, o estabelecimento foi mandado fechar pela polícia em 1810. Nas arcadas do Terreiro do Paço pululavam na altura engraxadores e curandeiros, estabelecidos defronte de lojas, tascas e quiosques ali também instalados.

Quando reabre, nove anos depois - conta o actual animador cultural do espaço, Luís Machado, num livro dedicado à história do estabelecimento -, o então chamado Café da Neve torna-se conhecido pelos seus gelados e refrescantes carapinhadas, refrescos de limão ou laranjas congeladas semelhantes a flocos de neve. Mas é preciso esperar até 1829 para a sua sorte mudar de vez. A culpa é de um abastado comerciante que o toma de trespasse, Martinho Bartolomeu Rodrigues, fornecedor de gelo da casa real. O antigo botequim de má fama inaugurado em 1782 converte-se então em lugar distinto para, mais tarde, se tornar um verdadeiro paraíso da boémia.

Abertura em dia incerto

Frequentados pela classe média, os cafés do século XIX eram então um veículo das ideias democráticas, escrevem António Barreto e Maria Filomena Mónica, em Retrato da Lisboa Popular - 1900: "Era o reino do boato, da intriga política e da propaganda". Mais tarde Salazar consideraria o café uma instituição horrenda, onde a ignóbil classe dos políticos abancava, conspirando contra a nação, e onde a juventude se perdia, referem os mesmos autores.

Na altura o precioso gelo vindo dos cumes serra da Lousã era guardado em poços cobertos de palha e folhas, onde se conservava meses sem derreter, até ser usado para fabricar os cobiçados sorvetes e para conservar alimentos, descreve Marina Tavares Dias. O magnata do gelo abre entretanto outra casa, essa sim considerada pela olisipógrafa o mais importante café lisboeta dos últimos 160 anos: o café Martinho, nas traseiras do Rossio. Substituído por um banco na década de 1960, era ali que Pessoa e Mário de Sá-Carneiro se encontravam. Só mais tarde passariam a frequentar o Martinho da Arcada, que ninguém sabe, aliás, em que dia entrou exactamente na história de Lisboa. À falta de melhor, convencionou-se há poucos anos que o seu aniversário seria comemorado a 7 de Janeiro. É ainda assim merecido o repasto, mais que não seja para celebrar a altura em que, no final dos anos 80, Cavaco Silva autorizou que o Estado financiasse com alguns milhares de contos as obras para o Martinho escapar ao destino dos restantes antigos cafés da cidade: a morte, neste caso em forma de snack-bar. Propriedade de uma septuagenária dona também da pastelaria Ferrari, a casa tinha entrado num declínio inexorável. O dinheiro serviu para levar a cabo o restauro traçado pelo arquitecto Hestnes Ferreira. Quando reabriu, a casa já pertencia ao minhoto que hoje recebe à mesa o Presidente da República.

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