Vertigem conjugal

Mario Martone (nascido em 1959) foi um dos realizadores que, há sensivelmente dez anos, deu corpo à ideia (e ao facto) de um "cinema napolitano", entendido quase enquanto "movimento". "Morte de un Matematico Napoletano" (1992) ou "L"Amore Molesto" (1995), entre outros, reivindicavam um sentimento de pertença napolitano que ia para além da simples dimensão física da cidade, para mergulhar num imaginário que convocava referências histórias e culturais ancestrais. Alguns dos filmes teatrais de Martone que pudemos ver (Martone, antes de realizador, é encenador) deixavam perceber a amplitude "multidisciplinar" desse mergulho e, do mesmo passo, a coerência com que a praticava.

"O Odor do Sangue", que é o primeiro filme de Martone a estrear comercialmente em Portugal, está um pouco longe disso - ou pelo menos afigura-se complicada a sua integração na dinâmica acima referida (o lugar até é Roma, não Nápoles). Com data de 2004, trata-se de uma adaptação literária (um romance de Goffredo Parise, que escreveu para Fellini "Le Tentazioni del Dottor Antonio" no filme de sketches "Boccacio 70") que aborda uma crise matrimonial da meia-idade. Michele Placido e Fanny Ardant são os protagonistas. Casados há presumivelmente "n" anos, a relação tornou-se "des-sexualizada", cada um tem liberdade para ter os parceiros que quiser, e o ponto em que o filme os apanha é altura em que um grão de areia se vem introduzir nesta engrenagem conjugal, aparentemente pacífica: Placido, que tem uma namorada mais nova, começa a ficar perturbado com o fascínio que Ardant demonstra por um suposto novo namorado, muito mais jovem do que ela.

Uma das apostas do filme é fazer passar essa relação, ou o que quer o espectador quer Placido (assim constituido em "ponto de vista") sabe sobre ela, exclusivamente pela palavra e pelos relatos de Ardant - mesmo quando se vê alguma coisa, nunca é seguro (e aliás, é bastante certo) que não passe da ilustração mental feita por Placido daquilo que a mulher lhe conta. Abre-se assim um "abismo", por onde escorrega a personagem de Placido, que nunca sabe definir bem os sentimentos que lhe são suscitados pelas histórias de Ardant. Espaço, também, para todas as ambiguidades, para a total vacilação entre real e imaginado; mas, sem que o filme perca alguma vez a sua dimensão mais intrigante, o "dispositivo" é mais interessante do que a sua consumação, como se o filme tendesse mais para o aclaramento da ambiguidade (o amante de Ardant existe mesmo?) do que para o seu adensar. Há qualquer coisa no próprio registo (entre uma teatralidade "casual" e uma impressão de naturalismo, ambos obviamente estudados) que parece ter medo de fundir os seus termos e de os levar às últimas consequências. Fá-lo uma vez, num plano breve e discreto (Placido e Ardant perante o "buraco" de uma escada em caracol), quase em "mise-en-abîme" - como se "O Odor do Sangue" fosse um "Vertigo" ao contrário, em que um homem fantasiasse não a mulher perfeita, mas o amante perfeito da mulher. Mas é como dissemos: as premissas são mais entusiasmantes do que o que Martone faz com elas. Não impede que seja um filme a ver, intrigante na sua capacidade de desafiar o espectador.

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