Irmãos Catita Um réveillon à antiga

DVD mostra Irmãos Catita, banda de culto da boémia lisboeta de 90. Amanhã, quando actuarem no Santiago Alquimista, veremos que pouco mudaram

Estávamos na década de 90 e Portugal era um país evoluído, na fila da frente da sala de aula europeia. Tínhamos dinheiro, éramos modernos e cosmopolitas. Contudo, espalhando os seus tentáculos por Lisboa - no Cinearte, no Ritz Clube, no Teatro da Comuna -, uma banda apontava o espelho ao país e via uma coisa diferente. Via tangos e yeh-yeh, cantava fado canalha e embebedava-se à antiga enquanto uma stripper de meia-idade apresentava o seu show. Chamavam-se Irmãos Catita e Very Sentimental Show, registo em DVD de uma actuação da banda no Ritz Club, em 1996 (na foto), regista a "ambiance" daquele microcosmo. Chamavam-se? Chamam-se, que nunca acabaram. Aí estão eles, dez anos depois, a animar o réveillon do Santiago Alquimista, em Lisboa (ver caixa).Very Sentimental Show, originalmente editado em 2005, reeditado este ano, nasce do material que o realizador Rui Simões foi compilando ao acompanhar os Irmãos Catita durante os seus "anos de glória", quando o Cinearte, em Santos - onde a banda tocava às sextas e sábados -, era local de paragem obrigatório para a boémia lisboeta. Rui Simões explica o fascínio: "A partir do momento em que se formam os Catita, começam a surgir no Cinearte as pessoas que viviam a noite lisboeta. Divertiam-se ali e não se divertiam noutros sítios - a diversão nocturna era muito moderada, muito sem graça, e os Catita tinham uma postura crítica e um lado chocante que é necessário."

Um happeningPara quem não esteve lá, de que falamos exactamente? De uma banda que prezava o seu anacronismo: cantava-se sambas, tangos e salsas, "swingava" jazz de clube fumarento, relembrava-se música africana e passava-se pelo rock"n"roll para dançar de anca encostada à do par. Sobre isso, cantava-se sobre pianistas de boîte, do paraíso que é Albufeira, de soldados que abandonaram Moçambique em direcção à Reboleira - depois, acabava tudo em delírio quando se anunciava o hit Conan, O Homem-Rã. Como resume Gimba, "um repertório de músicas que não vinham no mapa".
Não era só isso. Como aponta Rui Simões: "O Manuel João [Vieira] foi uma lufada de ar fresco e os Catita uma forma de ultrapassar o conservadorismo dos hábitos nacionais da altura." Um concerto dos Irmãos Catita era um happening, uma viagem excessiva e desregrada ao Portugal castiço e canalha que subsistia sobre a fachada moderna e cosmopolita. Sandro Core, cantor de charme italiano, cantava Volare.
Tony Barracuda aparecia para o momento espiritual da noite - envolvia comer uma sardinha crua e atirar os restos ao público. Manuel João Vieira, como ventríloquo amador, tentava controlar o vernáculo de Donald e a veterana Michelle despia o traje de sevilhana para strip integral.
Cómica e decadente, a intervenção burlesca dos Catita criou culto. Manuel João Vieira: "As pessoas iam em direcção a um glorioso zénite, ligeiramente alcoólico." "Toda a gente lá aparecia", conta Gimba. "Actores e actrizes, os boémios do Bairro Alto ou pessoas da televisão como José Rodrigues dos Santos. O Zé Pedro - o Johnny Guitar estava próximo - ou o Bernardo Sassetti e o pessoal do Hot Club, que às vezes tocavam connosco."
Hoje, as noites de concertos dos Irmãos Catita podem não ser tão badaladas quando há uma década, mas o país ali retratado não mudou substancialmente. Rui Simões realça que, "quando vemos o caso Carolina [Salgado], um romance numa casa de alterne, não deixa de ser a mesma coisa que se passava nos anos 60 e 70. Basta sair à noite para reparar nas mesmas atitudes, nos mesmos gestos, na mesma forma de puxar o cigarro. Podem não estar tão vivos como antes, mas esses trejeitos continuam presentes no quotidiano e é muito bom o país olhar para si próprio como os Catita o fazem".
Na noite de amanhã, no Santiago Alquimista, lá os teremos. "Tentamos ser fiéis às nossas origens, não mudamos um milímetro. Vamos embebedar-nos da mesma maneira, cair nos mesmos sítios, vomitar na mesma direcção", assegura Manuel João Vieira. O imutável Portugal dos Irmãos Catita.

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