O homem invisível

E se não houvesse nenhum gongo a assinalar a entrada na "twilight zone"? É a ideia mais impressionante de "Amor Suspeito" ("La Moustache"), o filme que Emmanuel Carrère dirigiu baseado num romance de sua autoria, publicado há vinte anos: um mergulho na "twilight zone", seja a que Rod Serling transformou em série de televisão seja outra qualquer, imersão numa zona onde tudo - tudo o que é "real" - vacila, incluindo as identidades e os reconhecimentos.

Compacto, em linha recta, sequíssimo e sem palha nenhuma, "Amor Suspeito" está algures entre Kafka e as histórias de Serling, ou os contos de Roald Dahl ou os nacos de perversidade que Hitchcock apresentava, também na televisão. Um mundo que se vira do avesso por dá cá aquela palha, mas que ao mesmo tempo se mantém exactamente igual.

"Amor Suspeito" é a história de um homem (Vincent Lindon) que decide rapar o bigode. Nos primeiros planos, Lindon toma banho de imersão e, passando-lhe a ideia pela cabeça, pergunta à mulher (Emmanuelle Devos) o que pensa. Ela responde que não sabe o que pensar, sempre o conheceu com bigode. Ele decide-se e rapa o bigode, à nossa frente. Depois vem a improvável crise: a mulher não dá sinal de notar que ele o rapou, os amigos também não, os colegas idem. Nada, nicles, como se nunca tivesse havido bigode - e é aliás o que todos lhe garantem, "nunca tiveste bigode", quando ele ganha coragem para abordar o assunto.

Começa como uma comédia, assim como uma "comédia" é o que Lindon encontra como justificação - um "complot" da família e dos amigos, depois, e é aqui que começa a ser grave, um "complot" do mundo inteiro. É a sua própria existência, e já não apenas a do seu bigode, que está em causa. O espectador segue o arco do riso à angústia, com o gelo de permeio. "Amor Suspeito" é uma espécie de fábula metafísica sobre o modo como um homem se apaga quando tudo em seu redor parece negar as certezas da sua identidade, da sua memória, da sua experiência. O mundo nega-o, e ele nega o mundo - foge para Hong Kong, porque só o que ele não conhece é que não lhe nega a existência. A porta de entrada na "twilight zone" tem dois sentidos, no entanto, e antes do filme acabar voltará a ser cruzada.

A câmara de Carrère filma esta história com impressionante frieza. E com frieza realista: não se trata só de não assinalar a vacilação, mas sobretudo de não distinguir entre mundos mentais e mundos físicos, entre sanidade e paranóia, entre sono e vigília. Continuidade absoluta, sabemos tanto quanto Lindon, somos tão passageiros como ele - e essa naturalidade do registo de Carrère, que não dá azo à instalação de qualquer clima alegórico, é um dos seus segredos. Toda a perturbação de "Amor Suspeito" nasce da casualidade com que a sua angústia metafísica é apresentada, é sempre pelo anódino que se revela a enormidade. Há um Preminger gelado dos anos 60 ("Bunny Lake is Missing") que se funda numa vertigem assim - uma mulher perde a filha, cuja existência depois toda a gente nega. "Mutatis mutandis", isto é quase um "remake", com outra economia de meios: em vez de uma criança, um bigode.

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