Ana Gomes acusa médicos de atitude "reaccionária" perante a lei
"Esse incumprimento tem muito a ver com os interesses das profissões médicas e paramédicas e de enfermagem", que se servem de um "código deontológico ultrapassado para perpetuar este estado de coisas", denunciou. E sublinhou que, com essa atitude "reaccionária", se tem assistido no nosso país a "uma aplicação perversa da lei", ao contrário do que sucede em Espanha, que tem uma lei idêntica à nossa.
Foi assim, sem meias palavras, que Ana Gomes evidenciou, ontem, no Porto, perante um grupo de socialistas europeus e de deputados, uma das causas que, na sua opinião, estão por detrás do aumento de abortos clandestinos num país que dispõe já de um enquadramento legal que permite a interrupção voluntária da gravidez em condições específicas determinadas - perigo irreversível para a saúde da mulher, malformação do feto e ainda casos de violação.
A denúncia, vigorosa, de Ana Gomes, feita no final de um debate sobre O aborto e os direitos reprodutivos, que decorreu no âmbito do VII Congresso do PSE (Partido Socialista Europeu), contrastou com os apelos à cautela e de moderação na campanha para o referendo sobre a despenalização do aborto até às dez semanas deixados quer pela eurodeputada, quer por Manuela Augusto, presidente do Departamento Nacional das Mulheres Socialistas.
As declarações de Ana Gomes motivaram, de imediato, uma reacção do bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, que acusou a eurodeputada de ignorância, por "desconhecer o código deontológico, a sua actualização, e ter feito declarações que são interessantes para a comunicação social" sem se ter informado devidamente.
Excesso de linguagem e de confiançaNo debate, Edite Estrela começou por historiar todo o processo que levou à convocação de um segundo referendo no nosso país, admitindo que "há vários estudos de opinião que revelam a vantagem do "sim"". "Mas temos de ser cautelosos", apelou, advertindo que, no primeiro referendo, os estudos também apontavam para uma vitória do "sim", mas foi o "não" que venceu, com uma abstenção de quase 70 por cento.
Para isso, apontou logo de seguida Manuela Augusto, contribuíram "dois erros fundamentais: excesso de linguagem, tanto dos defensores do "não" como do "sim", e excesso de confiança". "Desta vez, temos de trabalhar quase porta a porta, é preciso envolver homens e mulheres, bem como todos os patamares da sociedade, seja a nível político, seja a nível de instituições", apelou, dando nota de que a campanha a favor do "sim" tem de resistir à ofensiva de quem a vai querer colocar no patamar da liberalização do aborto e não na questão essencial, que é "a despenalização da maternidade consciente, feliz e responsável".
Aborto diminui na EuropaO ponto da situação sobre a legislação no quadro dos países europeus sobre os direitos reprodutivos das mulheres foi trazido ao seminário pela belga Vicky Claeys. "A taxa do aborto tem vindo a diminuir. Na Europa dos 25, a média é estável, mas há uma tendência para diminuir nas mulheres mais velhas e para aumentar nas mulheres mais novas", afirmou. Falando dos desafios que se colocam às mulheres, assinalou que "há ainda um grande caminho a percorrer" e que "há uma falta de estratégia mais alargada que inclui a educação sexual e os métodos contraceptivos". E foi dela que partiu a pergunta que marcou o debate. "Será o aborto ainda um tabu?", perguntou, respondendo que "o aborto é ainda um tabu para os médicos e para as mulheres".
Com os olhos na campanha para o referendo que aí vem, a eurodeputada belga Anne Van Lancker foi directa à estratégia: "Se quiserem vencer, não só têm de ter os argumentos correctos, como têm de conhecer bem os vossos opositores", sugeriu, alertando que há defensores do "não" que, ao contrário do que se poderia supor, não estão só no campo dos conservadores. "Há gente de mente aberta", avisou, recomendando que o debate se deve centrar nos direitos da saúde sexual e reprodutiva, inscritos em convenções de direitos humanos.
No final, a vice-presidente da organização feminina do Partido Socialista Europeu, a húngara Zita Gurmai, manifestou a disponibilidade das mulheres socialistas europeias em participar na campanha pelo "sim" no referendo sobre o aborto em Portugal.