"O Così fan tutte é uma ópera que fala de nós"

Na abertura da temporada lírica, o Teatro de São Carlos apresenta uma encenação da ópera de Mozart que aposta na dimensão humana das personagens e num jogo de simetrias aparentes. Por Cristina Fernandes

Conceituado encenador de teatro e realizador de filmes como Morte di Un matematico napoletano e Teatro di guerra, o italiano Mario Martone fez em 1999 a sua estreia como encenador de ópera com uma produção do Così fan tutte de Mozart. Estreada no Teatro San Carlo de Nápoles foi depois reposta em Ferrara (sob a direcção de Claudio Abbado) e será hoje, às 20h, apresentada no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa, na abertura da temporada lírica. Com direcção musical de Donato Renzetti, o espectáculo tem dois elencos e ficará em cena até 9 de Dezembro. Para Martone, que entretanto desenvolveu uma destacada carreira no campo da ópera (com outras encenações de Mozart, Verdi, Rossini ou Alban Berg), as óperas de Mozart são espelhos das contradições humanas.PÚBLICO - Così fan tutte inaugurou a sua carreira como encenador de ópera. Foi uma escolha ou a resposta a um convite?
MARIO MARTONE - Os encenadores de teatro são muitas vezes solicitados para encenar ópera. Durante muitos anos disse sempre que não, porque tinha medo do tempo de trabalho curto e das contingências que ocorrem ao pôr uma ópera em cena. Mas há sete anos, o teatro da minha cidade [Nápoles] propôs-me fazer o Così fan tutte. As óperas da trilogia Mozart/Lorenzo da Ponte são obras-primas no plano musical e teatral. Estão ao nível dos grandes dramas de Shakespeare. Por isso não fui capaz de dizer que não.
Suponho que não se arrependeu...
De forma alguma! Os problemas que tinha na cabeça ajudaram-me a iniciar um trabalho que depois se converteu numa forma pessoal de abordar a ópera. O San Carlo de Nápoles é um teatro muito grande e as óperas de Mozart/Da Ponte, sobretudo o Così fan tutte, são quase óperas de câmara. Necessitam de uma grande proximidade. Não me parece adequado fazer este tipo de óperas à maneira oitocentista: com um palco distante e uma grande cenografia. Imaginei uma cena que avançasse através de um pequeno estrado e dois braços laterais que ultrapassam a boca de cena sobre a orquestra. Aproximei assim muito mais os cantores dos instrumentistas. O espectáculo decorre sem nenhuma mudança de cenário, com apenas duas camas e uma vista sobre o mar. Com uma cena fixa a atenção centra-se sobretudo no trabalho teatral. Não gosto da ideia do teatro musical como um barracão de fantoches. Sabemos a importância que o teatro tinha para Mozart. Nós fomos habituados a escutar óperas em disco, mas isso é qualquer coisa que não existia para Mozart. A ópera só fazia sentido na sua realidade teatral.
Em Mozart a dramaturgia também está na música. Esse aspecto influenciou o seu trabalho?
Sim, o texto e a música são praticamente a mesma coisa. Cada personagem evolui quer através das palavras de Da Ponte quer da música de Mozart. Tal como D. Giovanni ou As Bodas de Fígaro, o Così é uma ópera que fala de nós. Não nos fala a nós, fala de nós! O teatro ou os livros que falam para nós podem ser belos ou interessantes. Mas as obras-primas falam de nós! O espectador sente que há qualquer coisa que pode reflectir a sua vida. Basta pensar na relação que existe entre a parte cómica e a parte trágica. Quando estamos apaixonados tornamo-nos ridículos, saímos de nós próprios, fazemos coisas que nos surpreendem depois. No Così fan tutte tudo nasce de uma brincadeira, o primeiro acto é uma burla. As personagens saem de si próprias por brincadeira. Mas no segundo acto cria-se uma angústia terrível. Isto é qualquer coisa de profundamente humano e é disso que eu gosto. Além do contexto cultural, da relação com o século XVIII, da dimensão esotérica do texto, o que me prende a esta obra é a dimensão humana.
É por isso que estabelece o paralelo com Shakespeare?
O Così fan tutte é muito similar ao Sonho de Uma Noite de Verão, onde Puck através do pó mágico opera a troca de casais. No texto de Da Ponte Guglielmo e Ferrando fazem uma brincadeira com as namoradas disfarçando-se de albaneses. No meu espectáculo este truque praticamente não está presente. É apenas um jogo feito com um turbante no início, depois permanece-se com a própria face. Creio que isto não traz nenhuma dificuldade ao espectador. Tal como no Sonho de Uma Noite de Verão é o encantamento que cria a troca. É o sair fora de si próprio. Ser dois em um é qualquer coisa que está dentro da alma humana.
As simetrias do Così fan tutte reflectem-se na sua encenação?
As simetrias sobre as quais trabalha Mozart são um engano. Na realidade todas se rompem a partir do seu interior. É preciso estar muito atento. As duas camas que uso em palco parecem iguais mas uma é de madeira e a outra de ferro. Como se sabe a madeira é um bom condutor e ferro não...
Faz sentido actualizar a acção das óperas de Mozart?
Não sinto necessidade de pôr estas personagens noutro contexto histórico. Sendo óperas que falam de nós, têm um nível de contemporaneidade imediata. Não precisam de mediação ou actualização.
Ser realizador de cinema repercute-se na sua maneira de abordar a ópera?
Sinto-me mais um encenador de teatro. Mais que o discurso sobre a imagem, interessa-me o discurso sobre o espaço. É da reelaboração do espaço e da relação entre as personagens e o espaço que nascem as imagens. No cinema, no teatro ou na ópera as imagens só são interessantes se forem fruto de um processo e não apenas uma escolha estética.

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