Faites vos jeux

O nome é Bond. James Bond. Mas teremos que esperar pelo último dos 139 minutos de "007 Casino Royale", a 21ª aventura oficial no cinema do agente secreto criado por Ian Fleming, para ouvirmos pela primeira vez no filme a "marca registada" que tem atravessado gerações de cinéfilos - a linha de diálogo e o inconfundível tema que Monty Norman escreveu em 1962.

Não é a única "vaca sagrada" que "007 Casino Royale" desrespeita: pré-genérico de cortar o fôlego? Não. Vodka martini "shaken not stirred"? Também não. "Q", o engenhocas e as suas criações de BD? Nem sinal de John Cleese (e, já que perguntam, também não há Miss Moneypenny). Trocadilhos pueris com nomes de mulheres esculturais, tipo Pussy Galore ou Christmas Jones? Nada. Com sorte, lá se arranja o genérico animado - mas mesmo esse, excelente como sempre (entregue novamente a Daniel Kleinman, que assumiu o cargo em 1995 para "007 Goldeneye", substituindo Maurice Binder), é carta estilizada fora do habitual baralho gráfico.

"007 Casino Royale" dispensa as muletas porque este é o Bond fundador do mito: "Casino Royale" foi o primeiro livro que Ian Fleming escreveu com a personagem, era o único do qual a produtora Eon de Albert R. Broccoli (detentora do "franchise" desde 1962 e "Agente Secreto 007", de Terence Young) não controlava os direitos (questão jurídica resolvida em 2000), era o último Fleming "original" que faltava adaptar. E, como quem não quer a coisa, este é o filme que introduz o sexto actor a interpretar o agente secreto, Daniel Craig, depois do afastamento de Pierce Brosnan, cujos quatro filmes como Bond vieram relançar a série. Tudo se conjuga para que "007 Casino Royale" seja um novo começo. Não estamos já fartos de ouvir essa história do novo começo, do novo actor ser o melhor Bond de sempre ou o mais fiel à criação de Fleming, etc, etc? Claro que sim. Porque é que haveríamos de acreditar agora?

a refundação do mito. Pela simples razão de que, mais do que em qualquer das quatro transições anteriores na imagem do "franchise", este é um filme refundador do mito. Põe o contador a zero, dispensa os sinais que nos habituámos a reconhecer, despoja a série da "ganga" supérflua que acumulou ao longo das décadas e retoma a simplicidade dos primeiros filmes ("007 Ordem para Matar", 1963, de Terence Young, é matriz evidente). Nada de implausibilidades fantasistas, nada de cenários grandiloquentes - este Bond não é o super-espião paródico de Roger Moore, nem o super-espião indestrutível de Pierce Brosnan.

Este é um espião dos nossos dias, duro, musculado, calculista, humano nas suas falhas, e esta é a sua primeira missão como agente com licença para matar, convenientemente adaptada ao pós 11 de Setembro (o alvo é um financeiro de terroristas e uma das melhores sequências coloca 007 a correr contra o tempo para impedir um atentado num aeroporto) mas com um travo a Guerra Fria que cai que nem ginjas.

Não por acaso, Judi Dench (imperial como de costume no papel da chefe do MI6, numa das raras pontes com as aventuras de Brosnan) faz a sua aparição em "007 Casino Royale" a dizer que tem saudades da Guerra Fria - e todo o filme se comporta como se esse Bond de 1953 (ano em que o livro foi publicado) tivesse sido actualizado para os nossos dias, como quem diz que a espionagem "high-tech" de hoje apenas no "factor humano" se pode resolver. O fulcro do filme (quer-se mais fora de moda do que isto, apesar do jogo estar outra vez a dar cartas?) é uma partida de "poker" de alto risco e alta tensão, onde tudo se resume à capacidade de "ler" o adversário, de jogar não com as cartas mas com os temperamentos e os comportamentos (apesar do realizador Martin Campbell, no seu segundo Bond depois do excelente "007 Goldeneye", se sentir menos à vontade nas cenas de "poker" do que nas cenas de acção). E esse torna-se no motivo recorrente de um filme onde, à imagem dos velhos filmes-caleidoscópio de espionagem dos anos 1960 (lá voltamos nós...), nada do que parece é, onde o "bluff" parece quase ser uma figura de estilo.

Ora, é por aí que esta reinvenção do "franchise" pode esbarrar nas expectativas do público - para quem está habituado a ver os Bonds espectaculares, "007 Casino Royale" pode ser uma decepção, vai na direcção oposta. Não é surpresa: sempre que um novo actor entra no papel, a produção "limita" os potenciais "estragos" prestando especial atenção ao argumento, minimizando as grandes "setpieces" que podem consumir orçamento. É isso que explica que os fãs tenham em tão boa conta "007 Ao Serviço de Sua Majestade" (1969, Peter Hunt), o único filme que o australiano George Lazenby interpretou - é um dos melhores argumentos da série (mas fez-lhe falta um actor mais credível).

radical livre.

Mas "007 Casino Royale" é notório pelo radicalismo absoluto que o vê retomar o "caderno de encargos" dos filmes fundadores ("Agente Secreto 007", "007 Licença para Matar" e "007 Contra Goldfinger", 1964, Guy Hamilton), reduzindo os efeitos visuais ao mínimo, propondo um argumento bem construído (com o dedinho de Paul Haggis, o oscarizado argumentista de "Million Dollar Baby", de Eastwood), abrindo espaço para sequências de acção suficientes para a série não deixar os "pergaminhos" por mãos alheias mas não fazendo depender a história delas. Este é um Bond "à moda antiga", antes do "franchise" ter começado a responder às exigências de um público mais sofisticado, com o suficiente de contemporâneo para não tornar 007 num anacronismo fora de tempo (embora, e lá vamos nós outra vez, haja por aqui também uma certa celebração dessa longevidade). Se quisermos, um retorno às raízes da fórmula, como recentes sequelas fizeram (o "Super-Homem" de Bryan Singer, o "Batman" de Christopher Nolan...) mas sem lhe mexer necessariamente.

É, por isso, razoavelmente falacioso querer comparar Daniel Craig com Sean Connery, George Lazenby, Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan - porque o Bond que lhe é pedido não é o mesmo que todos eles interpretaram, o "agente irresistível" que um dos filmes de Moore descrevia na perfeição, mas sim o herói antes de o ser, maneira eficaz e inteligente de contornar o dilema como-substituir-o-actor-que-relançou-a-série sem correr demasiados riscos de levar tareia na bilheteira. "007 Casino Royale" remete a questão para futuras aventuras, para já ficamo-nos pela evidência de que, neste Bond, Craig está à altura do desafio e não desilude.

Para contextualizar a coisa: não será por aqui que se descobrirá uma obra-prima do cinema mundial, mas nunca foi isso que se pediu a Bond. E, dentro desse universo, "007 Casino Royale" merece entrar direitinho para o panteão dos melhores Bond. Não era tão bom se todos os "blockbusters" fossem como este?

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