Setúbal homenageia fotógrafo "oficial" da cidade

Américo Ribeiro deixou mais de 140 mil fotografias que relatam o século XX setubalense. Algumas estão compiladas num livro que hoje é lançado

Por Cláudia Veloso

Poucas cidades do país poderão orgulhar-se de ter a sua história tão bem documentada em imagens como a que hoje vai homenagear o fotógrafo Américo Ribeiro. É através de um livro que compila 500 fotografias que Setúbal assinala o centenário do nascimento do homem que ajudou a fazer a história da cidade e que, com esse trabalho, acabou por ficar, ele próprio, na história da cidade. Américo Ribeiro comprou a primeira máquina fotográfica por 60 escudos, quando tinha 21 anos e trabalhava como empregado de balcão. Dois anos depois, em 1929, já era fotógrafo correspondente do Diário de Notícias e colaborador do jornal O Setubalense. Seguiram-se O Século, A Bola, o Correio da Manhã, o Diário Popular e o Diário de Lisboa.
Mas Américo Ribeiro era, também, o fotógrafo "oficial" das famílias setubalenses. Não havia casamento, baptizado ou festa que se prezasse sem uma fotografia tirada pelo artista. Nunca largava a máquina e dessa paixão resultaram mais de 140 mil fotografias, ao longo de sete décadas, hoje confiadas ao Arquivo Municipal Américo Ribeiro, instalado na Casa de Bocage. Pela objectiva do fotógrafo, falecido a 10 de Julho de 1992, passaram os grandes momentos e figuras que marcaram a história da cidade, mas também gente anónima a caminho das fábricas de conservas, fisionomias e modos de vida.
Para além das que captou, Américo Ribeiro foi ainda coleccionador de numerosos trabalhos de fotógrafos que o antecederam, material que está agora a ser recuperado e digitalizado. Este espólio encontra-se separado por temas, em 1246 caixas identificadas pela mão do próprio artista e desde há dois meses - altura em que ficaram concluídas as obras de restauro da Casa de Bocage - guardadas numa sala com as condições apropriadas para a sua conservação.
"Fiquei apavorado quando percebi, há uns anos, que aquelas fotografias estavam guardadas sem qualquer cuidado", recorda José Madureira Lopes, amigo e admirador de Américo Ribeiro que seleccionou as fotografias para o livro que hoje é lançado, Américo Ribeiro Todos os Dias.
É já o segundo da autoria de Madureira Lopes, que assim quer ajudar a perpetuar a memória do fotógrafo. Desta vez, porém, já não pôde contar com a ajuda de Américo Ribeiro na selecção das imagens, ao contrário do que aconteceu há 14 anos, quando o livro Um Tesouro Guardado - Setúbal d"Outros Tempos foi produzido.
"O sr. Américo disse-me várias vezes que gostava de fazer um livro com as fotografias mas, quando fomos à gráfica para saber quanto isso custava, levámos as mãos à cabeça", lembra Madureira Lopes. Com a ajuda de patrocínios, o projecto foi ganhando forma, embora a selecção dos temas não tenha sido fácil.
"Quem, como eu, teve o privilégio de entrar na casa do sr. Américo, ficava encantado com a quantidade de caixas com fotografias: uma só com a Feira de Santiago, outra só com a Festa da Nossa Senhora de Tróia, outra do Carnaval, outra da Escola Comercial e por aí fora", descreve o amigo.

Imagens que falamAmérico Ribeiro viria, porém, a falecer pouco antes do lançamento do livro, mas Madureira Lopes não tem dúvidas em afirmar que a dedicação àquele trabalho o ajudou a enfrentar os últimos meses de vida, já doente. "Mostrei-lhe, um dia, as primeiras folhas que saíram da gráfica, e no dia a seguir ele morreu", conta.
Hoje, folhear aquelas páginas é revisitar Setúbal de outros tempos e constatar que Américo Ribeiro esteve em praticamente todos os momentos que fizeram a história do século XX setubalense. Até numa visita de membros da organização nazi Força pela Alegria a uma fábrica de conservas, em 1938, recebidos pelo proprietário da firma com as mesas para o jantar dispostas em forma de cruz suástica.
Américo também fotografou a visita da Rainha Isabel II a Setúbal (1957), o cortejo que assinalou a chegada da luz eléctrica (1930), a queda de um bombardeiro em Tróia, em 1941, e, dois anos mais tarde, a de um bimotor inglês, a inauguração do monumento a Luísa Todi (1933), as inundações com a passagem do ciclone de 1941, as cerimónias fúnebres de seis oficiais ingleses que morreram afogados no Sado (1950), a recepção à equipa do Vitória de Setúbal após a conquista da Taça de Portugal (1967), a construção do Estádio do Bonfim com a ajuda dos setubalenses, as revistas, as marchas, os bailes, as procissões, os vendedores de castanhas, de sorvetes, de passarinhos, os pescadores, os saltimbancos, os amola tesouras e tantos outros.
Uma obra que leva Fernando António Baptista Pereira, conservador do Museu de Setúbal/Convento de Jesus, a afirmar que "a memória de Setúbal, entre os anos 30 e 80, deve muito a Américo Ribeiro, um homem muito atento às transformações urbanísticas da cidade, mas também à vertente humana e social". É nesse sentido que, conciliando o olho artístico com o de fotojornalista, Américo Ribeiro criou uma "arte maior", comenta o historiador.

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