A geração rasca e a classe média do conhecimento

As salas de aula converteram-se em sociedades assi­mé­tricas, em que um décimo dos alunos é excepcionalmente bom e três quartos são fartamente medíocres. Desapareceu dos
anfiteatros e dos laboratórios
a "classe média do conhecimento"

1. Faz tempo que não ouvia falar na "geração rasca" - e devo confes­sar que não sentia nem saudades nem falta nem, ao menos, nostalgia do conceito e da bugiganga analítica que, por largo curso, lhe andou as­so­ciada. Dias atrás, po­rém (mais precisamente a 4 de Novembro), Rui Ta­vares encar­regou-se de o recuperar - e, valha a verdade, vituperar - num ar­tigo, aqui no PÚBLICO, a que chamou "A grelha quei­ma­da".Se bem ou mal me lembro, o conceito foi desenhado para retratar o mo­­vimento de contestação à ministra da Educação Manuela Ferreira Leite. E, em particular, aludia à deriva mais ou menos obscena ou grotesca que então infestou protestos e manifestações de alunos contra a introdução de propinas, de exames e de outros - ainda hoje tão necessários quão indis­pensáveis - instrumentos de "responsabilização" do corpo dis­cente.
A palavra então cunhada - a palavra "rasca" - era forte, porventura, for­te de mais, e, rapidamente, extravasou as fronteiras da sua estrita ocasião de nascimento. Inicialmente serviu para evocar a soltura ou liber­ti­na­gem de cer­­­­tos gestos de protesto e a recusa obstinada de um princípio de res­pon­sa­bi­lidade ou de "auto-responsabilidade" de adolescentes e jovens adul­tos. Mas, num ápice, revelou a potência atractiva dos "conceitos-miscelânea", com a sua vocação total e "totalizante", e a "finura" sociológica das "profe­cias que se cumprem a si mesmas", com o seu efeito reprodutor e estigma­ti­zan­te.
A geração rasca já não era apenas a geração que se manifestava por se manifestar e para se manifestar. Já não era a negação corporativa de mais exigência e mais responsabilidade dos alunos no seu processo de for­­mação. Era agora o retrato de uma estirpe da incivilidade, de uma linha­gem apologista do "facilitismo" e da ignorância, de uma prole do analfa­be­tis­mo funcional e da indigência cultural. A geração rasca não era apenas e tão-só o lamentável produto de um sistema - o sistema educativo. Ela era outros­sim uma das responsáveis do estado do sistema, uma das "suas" cul­pa­das. A geração rasca deixara de ser o "cordeiro pascal" - a vítima inocente - para passar a ser o "bode expiatório" - a depositária da culpa.

2. Na análise do processo e das relações sociais, todas as simpli­fi­ca­ções são perigosas e esta - a da geração rasca - também era. Mas, na sua pro­funda incorrecção política - quiçá por causa dela -, tinha méritos e per­ga­minhos. Primeiro, o de pôr em causa a legitimidade de certos compor­ta­men­tos dos manifes­tan­tes, que até aí eram validados por simples empatia acrítica com a bondade selvagem da irreverência juvenil. Segundo, por apontar - contra a corrente - a evidente res­­ponsa­bi­li­dade dos alunos (e, já agora, dos seus pais) no processo de apren­dizagem. Se dela se retirou - como pretende ou sugere Rui Tavares - a ideia de que todos os alunos da época, sem matizes nem diferenciações, estavam condenados ao "grau zero" do saber e a um atávico insucesso, trata-se evi­den­temente de inferência ilegítima. Como, de resto, seria ilegítimo considerar que se organizara uma geração da barbárie, sem modos nem maneiras, sem siso nem bom senso. A psicologia das massas explica largamente a ex­ci­ta­ção dos indivíduos, a exaltação das práticas grupais e os mecanismos da sua rebelião. Não são necessárias explicações adicionais.

3. Mas se não é adequado nem razoável o baptismo de uma era e dos seus protagonistas com o epíteto de "geração rasca", também não convence o exercício de optimismo antropológico a que se devota Rui Tavares. Na pri­meira parte do seu artigo - que é a única que para aqui releva -, procura vingar a suposta humilhação da "geração da rasca" pela exibição do número de jovens cientistas portugueses que publicaram artigos na Science e na Na­ture, no ano que passou. Num só ano, houve mais artigos científicos ali assi­nados por portugueses do que em todo o historial daquelas revistas. Eis a prova de que a educação não é tão sinistra quanto se pinta e de que os "ras­cas" não eram afinal tão "rascas" quanto se lobrigava.O problema actual da educação portuguesa não é - pelo que me diz a experiência e pelo que leio nos números - a falta de bons alunos, de alunos excelentes. Diria até, com base puramente empírica, que hoje os melhores alu­nos são mais em número e ainda melhores em qualidade do que há 20 anos atrás. O problema é que, apesar dessa subida dos níveis de excelência, a média é hoje pior. As salas de aula converteram-se em sociedades assi­mé­tricas, em que um décimo dos alunos é excepcionalmente bom e três quartos são fartamente medíocres. Desapareceu dos anfiteatros e dos laboratórios a "classe média do conhecimento", para usar um conceito que tomo de em­prés­timo a José Pedro Aguiar-Branco. O fosso entre os bons alunos e os restan­tes é de tal ordem que os professores já não conseguem empregar uma lin­gua­gem que sirva indistintamente ambas as classes. Quem todas as sema­nas os encara, até já lhes adivinha o destino. Os bons - os tais muito bons - não ficarão em Portugal e já só pensam - legitimamente e bem - nos anos que passarão fora. Os ou­tros, do altar da sua sofrível mediania, aguardam o que o mercado de trabalho e o trabalho do mercado lhes reservar.
E - mais triste e mais grave - o fosso de saber reproduz, cada vez mais fielmente, as diferenças sociais e económicas. O facilitismo e a promes­sa do sucesso escolar univer­sal produziram uma aristocracia do saber - uma "so­focracia" - que redunda praticamente no espelho das desigualdades so­ciais. Ao contrário do que se imagina, os verdadeiros indutores do conhe­ci­men­to são agora as famílias, com os seus recursos culturais e financeiros, e já não as escolas.
A exibição gratuita e desgarrada da internacionalização dos cientis­tas portugueses é motivo de orgulho, mas diz menos sobre o nosso sistema de ensino do que, à partida, se poderia suspeitar. O sistema não será talvez o da dita "geração rasca", mas, a cada dia que passa, fica mais distante do grande desígnio democrático de formar uma classe média do conhecimento. Jurista e deputado (PSD)

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