Vive la reine!

O realizador norte-americano Francis Ford Coppola foi vindimar em Versalhes, na semana passada. É que o palácio francês onde a sua filha, Sofia, rodou "Marie Antoinette" (e de que ele é co-produtor) prepara a primeira colheita do vinho com o nome da rainha francesa, a mulher de Luís XVI decapitada durante a Revolução Francesa.

Foi em Julho que o Palácio de Versalhes abriu o "Domínio Maria Antonieta", organizando um percurso especificamente dedicado à rainha. Já foi duplicado os visitantes, revela Aude Revillon d'Apreval, responsável pelo serviço de imprensa. Os franceses apaixonaram-se por Maria Antonieta? Deixou de ser a rainha má? "Maria Antonieta nunca deixou o coração e a cabeça dos franceses. Os franceses são muito ligados à personagem. As rainhas de França são pouco conhecidas, ela é um caso único", diz a historiadora francesa Cécile Berly, autora do livro "Marie-Antoinette et ses Biographes", publicado há um mês. E acrescenta: "As interpretações de que haverá supostamente um novo interesse por Maria Antonieta porque a França está a virar à direita são um completo disparate."

A biografia da inglesa Antonia Fraser, em que o filme de Sofia Coppola se baseou, também não pode ser considerada propriamente novidade, diz Berly.Maria Antonieta é uma das personagens históricas que tem mais biografias. "Elas são muito, muito numerosas. Há um comércio biográfico à volta de Maria Antonieta." O que o filme de Sofia Coppola fez "foi relançar toda uma efeverscência em redor das biografias, dando-lhes uma segunda juventude". A de Fraser, diz Berly, "tem grande qualidade, é muito bem escrita, mas é a mais hagiográfica de todas". Isso também não é nada de muito diferente, "porque a quase totalidade das biografias sobre Maria Antonieta são muito, muito simpáticas". A ideia da rainha monstruosa acabou depois de ter sido guilhotinada. "No século XIX, com a restauração da monarquia, já era a rainha mártir, uma rainha muito humana".

adolescente em versalhes.

Sofia Coppola acendeu as luzes - "pôs um projector" - sobre a ideia de uma adolescente se ter tornado rainha de França. "A ideia é de Stefan Zweig e é a biografia mais lida sobre Maria Antonieta", acrescenta a historiadora. A obra de Zweig chegou a ser considerada por Coppola, mas a realizadora americana achou-a um pouco severa e acabou por preferir a de Fraser.

Cécile Berly, que adorou o filme, não percebe a má recepção que teve no Festival de Cinema de Cannes. Houve mesmo quem descrevesse "Marie Antoinette" como "Lost in Revolution" - trocadilho com o anterior filme da realizadora, "Lost in Translation"/ "O Amor é um Lugar Estranho". "Talvez eles esperassem uma reconstituição histórica. O filme tem alguns erros, mas isso não é grave. O que interessava Coppola era a fragilidade dos adolescentes." E é assim que a vemos hoje: "Como uma adolescente muito frágil, traumatizada, que sofreu um inferno em Versalhes".

Apesar do comércio biográfico em redor de Maria Antonieta, não há obras que contem a sua vida do ponto de vista da Revolução Francesa. "As biografias são escritas a favor de Maria Antonieta e contra a revolução. Ela é encarada como a maior vítima da Revolução Francesa." Até agora, os historiadores especializados na revolução não trabalharam sobre a personagem. "Evitam-na. Porque consideram-na uma actriz secundária e que foi monopolizada pelas biografias hagiográficas." De que é que têm medo? Há um embaraço em redor do facto da rainha, uma consorte, ter sido decapitada. "Só os reis é que eram decapitados, as rainhas consortes não era mortas." Não é fácil explicar a crueldade dos revolucionários: o pequeno delfim, filho da rainha, depôs no julgamento acusando a mãe de incesto.

O livro "Marie Antoinette - The Journey", que vai ser publicado em Portugal em Janeiro pela editora Oceanos, mostra a simpatia de Antonia Fraser por Maria Antonieta, vendo-a como bode expiatório - "Entre outras coisas, foi culpada de toda a Revolução Francesa". Fraser, mulher do dramaturgo Harold Pinter e "lady" por nascimento, acaba a introdução a um livro com mais de 600 páginas com a interpelação "Vive La Raine!"

O objectivo da biógrafa, como indica o subtítulo do livro - "The Journey" -, foi traçar o duplo caminho da rainha nascida na Áustria: "Por um lado, esta era uma viagem política importante: partiu da sua terra natal para actuar como uma embaixadora - ou agente - num país predominantemente hostil onde recebeu a alcunha de "a austríaca". Por outro lado, foi uma viagem de desenvolvimento pessoal, de uma inadequada noiva de 14 anos até a uma mulher madura muito diferente, vinte anos depois."

E embora todos saibamos o fim da história, que lhe cortaram a cabeça a 16 de Outubro de 1793 (o filme de Coppola acaba muito antes, com a saída da família real de Versalhes), a biógrafa inglesa sublinha que quis afastar a sombra da morte: "Tentei impedir que o túmulo sombrio fizesse sentir a sua presença demasiado cedo. O elegíaco devia ter o seu lugar assim como o trágico, flores e música assim como a revolução e a contra-revolução."

A biografia quer desconstruir "mitos cruéis" e "distorções libertinas", sendo que a principal das mentiras acaba por ser trabalhada pelo próprio filme de Coppola. Numa cena, Maria Antonieta surge entre bolos com cores feéricas, há muita gente que os come e é a própria rainha que acaba por negar aquilo em que todos estamos a pensar: ela nunca manda os pobres, famintos, comer bolos, como tantas vezes se conta. Fraser explica que "a frase letal", aquela que Maria Antonieta nunca disse - "Qu"ils mangent de la brioche" (não era bolo, mas brioche) - "era conhecida pelo menos um século antes, quando foi atribuída à princesa espanhola Maria Teresa, noiva de Luís XIV, numa versão um pouco diferente". Há outras Messalinas que também a disseram.

A vida sexual da rainha, conclui a biógrafa, é uma área em que se ficará para sempre num terreno especulativo: "Amante insaciável? Lésbica voraz, heroína de uma única paixão romântica". O que não é especulação é que Maria Antonieta era "uma mulher infeliz": o seu casamento só foi consumado sete anos e três meses depois do casamento. E foi graças às ordens sem rodeios do imperador José II, irmão da rainha, que Luís XVI deixou finalmente de ser "um marido a dois terços", expressão do próprio imperador. A 19 de Dezembro de 1778 nascia a primeira filha, Maria Teresa, como a mãe da rainha, uma crítica feroz da ausência de filhos.

Foi a infelicidade no casamento, anterior à maternidade, que levou Maria Antonieta a procurar divertir-se, segundo a biógrafa. A frivolidade, a ligeireza de espírito, "a que Maria Antonieta é tão frequentemente associada na cabeça das pessoas, pode ser recuada até este período, quando o desapontamento com o seu casamento começou a ser mascarado pelo gozo da sua posição". Os panfletos satíricos, que acompanharam grande parte do seu reinado, descreviam-na, entre outras coisas mais maldosas, como uma "fashion victim". Coppola filma sapatos, sapatos e sapatos. Tecidos, tecidos e tecidos e o famoso cabeleireiro Léonard. "Ela era inquestionavelmente amante do prazer".

Mas Fraser diz que se pode argumentar que um dos "deveres" da rainha de França, o centro da moda mundial, "era assegurar que as modas florescessem, liderando-as". "A jovem Maria Antonieta, com a sua graça e amabilidade, estava bem equipada para representar o seu papel de figura hierática em Versalhes. [...] O "glamour" de Maria Antonieta - para usar uma palavra do século XX que parece apropriada - parecia torná-la completamente adequada para o papel de rainha de França." Há várias fontes, diz Fraser, que falam da sua beleza.

a mudança da rainha.

Maria Antonieta nasceu a 2 de Novembro de 1755 (um dia depois do terramoto, e teve como padrinhos os reis de Portugal), sendo a décima-quinta filha da imperatriz Maria Teresa, para quem as princesas tinham "nascido para obedecer". A biógrafa defende que a rainha "é uma vítima desde o nascimento". "A sua enorme pouca sorte foi ter sido mandada para França para cimentar um tratado Habsburgo-Bourbon que era o contrário das alianças tradicionais [...]. Ela era, afinal, a Austríaca muito antes de ter aparecido em França."

Foi a morte ou a desfiguração de duas das suas irmãs arquiduquesas que a tornaram inesperadamente na última das princesas austríacas disponíveis para ser delfina de França. "O problema é que esta pequena criatura afável tinha conseguido evitar mais ou menos a desagradável experiência da educação." A descoberta do facto pela imperatriz sua mãe poderia ter tido alguma graça, diz Fraser, "até ponderarmos nas consequências a longo prazo para Maria Antonieta da sua iliteracia de juventude". No filme, a educação deficiente é sugerida através do borrão que ela faz ao assinar o contrato de casamento com Luís XVI.

Os franceses, diz a biógrafa, acharam que a educação de Maria Antonieta tinha sido negligenciada. "Mas a questão da sua escrita, o seu ritmo de caracol, os borrões, os erros de ortografia, podiam ser resolvidos, como foram, em larga medida, com o tempo", diz Fraser, num livro que cita abundantemente correspondência. A leitura, porém, era uma deficiência mais grave. Quando a filha Maria Teresa nasceu, Maria Antonieta quis dar-lhe de mamar, seguindo as doutrinas de Jean-Jacques Rousseau, de quem ela visitou o túmulo e conhecia as teorias. De facto, a rainha começou a adoptar algumas normas novas, porque acreditava, tal como outras figuras reais na Europa, que tinha direito a alguma privacidade. "O contraste entre as magníficas salas de cerimónia e a rede de pequenos gabinetes ou salas privadas nas suas traseiras (o que é uma surpresa para o visitante moderno de Versalhes) representa o abismo entre os dois mundos", escreve Antonia Fraser.

A rainha abandona o rouge escarlate (vê-se mais rouge escarlate nas "Ligações Perigosas" de Setephen Frears do que no filme de Sofia Coppola) e começa a usar os seus clássicos vestidos brancos de musselina. Uma imagem que foi imortalizada, lembra a biógrafa, em 1783 pelo pincel de Louise Elisabeth Vigée Le Brun.

O mais visível, para quem vai hoje a Versalhes, é, de facto, o "Domínio Maria Antonieta". Ela entendeu o "Zeitgeist", o espírito do tempo, diz Frazer. O Petit Trianon, já feito nos reinado de Luís XV em estilo neoclássico e não barroco, é a âncora do domínio, que incluiu, entre outras coisas, os jardins à inglesa, o Templo do Amor, o Teatro da Rainha, a Gruta e o Hameau da Rainha.

O Hameau, a célebre aldeia miniatura feita por Maria Antonieta, é a figuração das teorias de Rousseau. "Estava muito em voga na época o regresso à natureza, ao campestre", explica ao Y Jean-François Quemin, do Palácio de Versalhes. Ela deixou, acrescenta, a sua marca: "Maria Antonieta foi a rainha que teve uma influência artística mais forte no palácio. Criou outro lugar que é diferente do lugar de representação de Luís XIV."

Ironicamente, escreve a biógrafa, "a rainha, tantas vezes vista como o epítome do Ancien Régime em todo a sua superficialidade, não gostava particularmente do esplendor pomposo. Era a vida de Versalhes que estava a ficar fora de moda, não a do Petit Trianon."

Hoje, em França, as datas em redor de Maria Antonieta não são comemoradas, diz a historiadora Cécile Berly. Quando, em 1989, passaram 200 anos sobre a Revolução Francesa ninguém sabia o que fazer com Maria Antonieta e Luís XVI, "com estes dois personagens históricos".

Mas as humilhações de Maria Antonieta, sublinha Cécile Berly, começaram muito antes da Revolução Francesa. "E muita da crueldade dos revolucionários contra a rainha também foi inventada. Não nos esqueçamos que os primeiros inimigos da rainha foram os membros da família real, como os irmãos do rei, o Conde da Provença. Era detestada por todos os contra-revolucionários, pelos realistas, que achavam que ela dava uma imagem negativa da monarquia." Maria Antonieta é, para a historiadora, a actriz mais importante da revolução e não uma personagem secundária. Um só exemplo: a sua condenação à morte pelos revolucionários "provocou um problema diplomático entre a França revolucionária e toda a Europa monárquica."

Do outro lado do Atlântico, a Revolução Americana tinha sido ajudada por Luís XVI. Mais apaixonados do que os franceses por Maria Antonieta só mesmo os americanos, diz Berly. É, por isso, que a realeza de Hollywood, a dinastia Coppola, se encontrou com a realeza francesa - ou o que resta dela.

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