Margarida de Abreu A mulher que quis pôr Portugal a dançar "a sério"

Em 60 anos de carreira ensinou gerações a amar a dança. E amou-a. Foi uma revolucionária

Margarida de Abreu manteve quase até ao fim o porte de bailarina, mesmo quando a idade já a obrigava a usar bengala. No estúdio de Lisboa onde dava aulas em exclusivo, depois de deixar o Conservatório Nacional, em 1986, passava horas a observar os exercícios na barra ou a corrigir a postura e os gestos das suas alunas, com a mesma firmeza e serenidade com que falava de uma carreira com mais de 60 anos que ajudou a criar uma verdadeira revolução na dança em Portugal."Não sou uma revolucionária", dizia, lembrando que assistiu a diversas revoluções e a duas Guerras Mundiais. "As revoluções são para outras coisas. Eu só quis que Portugal dançasse a sério, que deixasse de ser só folclore e que experimentasse."
Margarida de Abreu morreu ontem, aos 90 anos, depois de um mês de internamento no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O seu desaparecimento deixou a comunidade da dança em Portugal sem uma das figuras de referência para gerações de bailarinos e coreógrafos. "Nas aulas dela, mais do que a técnica, ensinava a sentir a dança, o movimento", disse à Lusa o coreógrafo Vasco Wellenkamp, seu aluno na década de 1960. Para o ex-bailarino, esta mulher enérgica que deu aulas de dança no conservatório durante 50 anos "irradiava uma aura especial": "A principal chave do seu ensino foi o amor à dança."
Foi por a amar que Margarida de Abreu estudou em várias cidades da Europa e desafiou convenções num país em que as artes de palco não ficavam bem às meninas de família e os rapazes não eram autorizados a inscrever-se nas aulas de dança (só partir de 1950).
"No começo não havia nada", disse ao PÚBLICO em 2000, quando o Teatro de S. Carlos decidiu homenageá-la. "Depois começou a haver, mas não ficava bem. A dança era para as "pessoas diferentes". Eu quis combater essa apatia de quem queria ver as companhias que passavam por Lisboa [como os Ballets Russes] mas não queria que elas existissem em Portugal."

Europa em guerraMargarida foi educada numa casa em que se falavam várias línguas e onde havia sempre muita música. A mãe, suíça, deu aulas de piano, francês e alemão aos filhos do republicano Afonso Costa, e acabou por se casar com o advogado António Barros Mendes.
Margarida atravessou pela primeira vez a Europa em guerra quando tinha três anos. A viagem entre Portugal e a Suíça foi feita de comboio e demorou dois meses. Em Setembro de 1939, quando a Alemanha invadiu a Polónia, estava em Viena e viu-se obrigada a regressar.
A paixão pelo movimento e a música começou aos 12 anos, apoiada pela mãe, mas só aos 17 a levou a sair de Portugal para estudar em Genebra (Instituto Jacques-Dalcroze), onde se formou em 1937. Mas Margarida queria aprender mais, ver mais. Seguiram-se Berlim e Viena.
A formação com Dalcroze (músico e compositor), a influência dos princípios de libertação de Isadora Duncan e Mary Wigman e, mais tarde, o contacto com o coreógrafo alemão Kurt Jooss ensinaram-lhe que "sem técnica não há estilo", frase que serviu de base ao manifesto que escreveu em 1945 - apelava a uma concepção mais moderna da dança - e que entregou pessoalmente a Salazar.
Um ano antes tinha fundado o Círculo de Iniciação Coreográfica - a que se deve, em parte, a criação do Ballet Gulbenkian, em 1965 - para combater o Grupo de Bailados Verde Gaio, a companhia de Francis Graça e António Ferro, o homem responsável pela propaganda do Estado Novo.
"Queria dar a conhecer o que era a dança, mostrar que não era só dar à perna como as pessoas pensavam", disse à revista Marie Claire em 1990. "É uma arte muito profunda ligada à pintura, à escultura, à música."
O círculo de Margarida de Abreu fechou-se em 1960 e o regime convidou-a a dirigir o Verde Gaio, cujo "folclore estilizado" tantas vezes criticou por não acrescentar nada à dança nem à arte popular. Nos 18 anos que esteve à frente da companhia renovou o seu programa, introduzindo a dança clássica e expressionista.
Ao longo da carreira, Margarida de Abreu criou coreografias como Pastoral, Nocturnos, Passatempo ou Visão Fugitiva, as duas últimas dançadas há dois anos por três gerações das suas alunas, num programa de homenagem no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Impedida de seguir carreira como bailarina por causa de uma ciática, Margarida de Abreu entregou-se por completo ao ensino em 1939. "Já que não podia dançar, havia de fazer dançar."
O corpo da professora Margarida de Abreu estará hoje a partir das 14h00 em câmara-ardente na Basílica da Estrela, de onde o funeral sairá amanhã, às 10h00, para o Cemitério dos Olivais.

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