Um herói em construção

Exactamente o que é "Uma Verdade Inconveniente"? Teoricamente, é um documentário que regista a conferência sobre os efeitos devastadores do aquecimento global que o ex-vice-presidente de Bill Clinton (e ex-futuro presidente dos EUA, derrotado por George W. Bush), Al Gore, tem apresentado pelo mundo. Posto desta maneira não parece grande programa, sobretudo porque a conferência de Gore, que o político elegantemente ilustra com uma série de slides projectados a partir do seu computador portátil, se destina a um público maioritariamente americano - país que, como os dados objectivos constantemente referenciados provam (e ao contrário de uma Europa consciente dos desafios), continua a ser estruturalmente resistente a políticas ambientalistas, sobretudo depois de a administração Bush insistir em não ratificar o acordo de Quioto.

A "verdade inconveniente" do título é aquilo que, como Gore diz citando Mark Twain, as pessoas (ou, no caso, a administração Bush) não querem ouvir porque vai contra tudo em que elas querem acreditar (e, de caminho, corre oposta aos interesses estabelecidos). No entanto, é redutor resumir a apresentação de Gore a uma diatribe anti-republicana, ou o próprio político a um cristão-novo da causa ambiental. Desde que foi eleito para o Congresso americano nos anos 1970, tem sido um campeão da causa ambientalista. Após a sua derrota nas eleições presidenciais de 2000, a sua reinvenção como consciência pública e moral do ambientalismo americano correspondeu apenas a uma recentragem da sua imagem naquilo que realmente o toca no coração - e no cumprimento de um "serviço público" que muitas vezes se perde por entre a extensa burocracia de Washington.

É exactamente aí que se centra o interesse do documentário de Davis Guggenheim, que se desvenda o seu olhar cinematográfico: "Uma Verdade Inconveniente" é o registo de uma "performance" finamente ajustada que utiliza as técnicas provadas do "show business" para fazer passar uma mensagem cívica, e, ao mesmo tempo, o retrato de um homem que usa as artes da política e cria uma "persona" pública para defender a causa mais próxima do seu coração (é para isso que servem os interlúdios "pessoais" que pontuam a conferência e revelam pormenores da sua vida que de algum modo ajudaram à definição das suas convicções ambientalistas). Se quisermos, Guggenheim olha para Gore como um herói americano, no sentido clássico, quase Capraesco, da definição: alguém que, eternamente optimista, se reinventa depois da queda e reparte do zero como se nada tivesse acontecido, encontrando as suas forças nas crenças mais profundas que nunca abandonou mas que esqueceu durante algum tempo. Fá-lo rasando (sem nunca assumir) algumas tangentes hagiográficas porque o foco central é sempre a mensagem urgente que se quer fazer passar.

A mensagem passa porque Gore é um excelente comunicador, transmitindo a informação essencial sobre o aquecimento global de modo simples e coloquial, com o à-vontade de quem domina o assunto, com a informação científica impecavelmente verificada, com a aparente espontaneidade dos àpartes planificados traindo a rodagem de mais de mil apresentações desta conferência, regularmente revista e actualizada. Gore não é alarmista nem charlatão e recusa-se a baixar os braços perante a magnitude da tarefa, o que apenas reforça a tal sensação de que Davis Guggenheim o enquadra como um "herói em construção" (e não são poucos aqueles que vêem "Uma Verdade Inconveniente" como uma possível "arma" numa eventual pré-pré-campanha para presidente em 2008) - e todos sabemos como os americanos prezam aqueles que se mantêm fiéis a si próprios e às suas crenças, uma espécie de "heroísmo quotidiano", resistente e militante, que Al Gore encarna na perfeição. Talvez essa seja a verdadeira "verdade inconveniente" deste filme que cumpre impecavelmente o seu papel de "grito de alerta" ecologista: mostrar que a América de Bush é um país fragmentado e polarizado onde há muito quem pense de outra maneira que não a da "linha oficial".

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