O "thriller artístico"

As comemorações de mais um aniversário do atentado às torres gémeas de Nova Iorque serve de pretexto para a estreia de mais um objecto estranhíssimo: desta vez, um "thriller", em duas línguas (francês e inglês), sobre espiões conectados (nunca se sabe bem como) com os acontecimentos que levaram ao atentado do 11/09. A construção da história é vista em retrospectiva e centrada numa veterana dos serviços secretos franceses (Juliette Binoche, o melhor desta fita confusa e desconjuntada), a braços com as memórias do passado e com o projectado reencontro com Elliot (Nick Nolte), ex-companheiro de espionagem e pai de Orlando (Sara Forestier), também ela convocada, a par com o filho David (Tom Riley).

Quando todos estão presentes, aparece o "vingador" William Pound (um sinistro e misterioso John Turturro), misturando citações literárias (Blake e D. H. Lawrence, entre outros) com sanguinárias acções de inexplicada violência. Se esta breve tentativa de sinopse se não entende é porque o próprio filme se compraz numa pretensiosa acumulação de dados, que, longe de explicitar a acção, antes a dissolve numa rede complexa de sinais de sentidos contraditórios.

Desde logo, avulta o jogo literário com os nomes: o conflito entre Elliot (quase como em T.S. Eliot) versus Pound (como em Ezra Pound) não pode deixar de remeter para os nomes maiores do modernismo poético norte-americano; o nome da filha, Orlando, evoca a personagem "andrógina" do romance homónimo de Virginia Woolf, outro dos incontornáveis vultos do modernismo anglo-saxónico. Se juntarmos a esta "brincadeira" inconsequente o uso quase arbitrário das citações, teremos a dimensão cifrada deste pretensioso exercício de ocultação, esgotando-se, de certo modo, no próprio prazer de ocultar. Tudo pretende ser metafórico, codificado, tal como a visão da personagem de Binoche que vê tudo desfocado, quando retira os óculos.

Há indícios pouco claros de uma teoria da conspiração, há uma paródia voluntária ao género com recurso às hilariantes sessões telefónicas de psicanálise, há um desejo de fragmentar e desconjuntar a narrativa, sem que tal constitua qualquer mais-valia para o filme. Algures por detrás deste "thriller" falso existe a vontade de fazer literário, de brincar com as estratégias ficcionais de um Borges ou com as "abstracções" significativas de um Godard. Porém, o resultado é pobre: nem a realização hesitante do argentino Santiago Amigorena, nem a sucessão precipitada e aleatória de peripécias, numa Veneza de bilhete-postal, ultrapassam a banalidade.

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