A tarefa mais urgente é a mudança de mentalidade

Com a sua estatura colossal e sorriso aberto, Al Gore, antigo vice-presidente dos Estados Unidos, eclipsou com a sua presença as celebridades que se encontravam este ano no Festival de Cannes. Estrela insólita, o sulista americano, 58 anos, apresentou o documentário "Uma Verdade Inconveniente", que divulga a sua cruzada ecológica - mas que também se debruça sobre a vida de Al.

No ecrã, Gore fala em salvar o mundo de uma maneira que John McClane (da série de filmes "Assalto ao Aeroporto") ou Jack Bauer (da série televisiva "24") nunca imaginaram. Nos seus sombrios avisos sobre o aquecimento global, Gore tem mais semelhanças com Dennis Quaid em "O Dia Depois de Amanhã" - e o que parecia não passar de excentricidade neste filme de antecipação científica poderá tornar-se realidade. Gore mostrou os diapositivos, nos quais se baseia o seu documentário, mais de mil vezes ao longo de 30 anos em todo o mundo. Mas será que fez o suficiente durante os seus oito anos que esteve no poder (1993-2001), como vice-presidente de Bill Clinton?

"Sinto que tentei fazer tudo o que sabia", diz ao Y, com uma réstia de desapontamento na voz. "Estou contente por ter ajudado a conseguir um grande progresso em relação ao Protocolo de Quioto, mas fiquei desapontado pelo facto do Senado norte-americano, que era controlado na altura pelo partido da oposição, se ter recusado a ratificar o tratado - e é também verdade que membros do meu partido no Senado estavam relutantes em apoiá-lo. No entanto, uma das coisas que aprendi foi a constatação de que a tarefa mais urgente é a mudança de mentalidade dos americanos e das pessoas noutros pontos do mundo em relação ao problema climatérico."

A presença de Gore faz-nos magicar o que poderia ter acontecido se tivesse sido ele, em vez de George W. Bush, a ganhar as eleições em 2000. Uma coisa é certa, Gore teria ratificado o Protocolo de Quioto (assinado por 164 nações, que concordaram em reduzir as suas emissões de gases de carbono), tratado esse que permanece por ratificar na América e na Austrália. Mas mesmo que o tempo se esteja a esgotar, Gore está optimista porque o actual presidente não vai permanecer no poder para sempre.

"Tive uma conversa privada com o administrador da CEO, uma das maiores empresas americanas, e grande apoiante do presidente Bush. Disse-me: "Sejamos realistas, Al. Quinze minutos após Bush sair da Casa Branca, teremos uma nova política onde nos uniremos à comunidade internacional, seja o sucessor democrata ou republicano." Creio que existe actualmente a possibilidade de Bush ser forçado a mudar a sua política nos próximos dois anos. Existe um tempo limite para ele viver na sua bolha, afastado do resto do mundo e da realidade em que vivem as outras pessoas. Acho que aquela bolha está prestes a rebentar e eles poderá ser forçado a mudar."

Mantendo que não se irá candidatar à presidência - mesmo que o seu índice de popularidade entre os Democratas e do público em geral seja extremamente elevado -, está contente por ambos os lados do espectro da política americana estarem a dar ouvidos ao que ele diz. "Quando me propus fazer o filme as pessoas pensaram que teria conotações políticas. Mas agora percebem que a mensagem é dirigida a todos. Tanto democratas como republicanos vão ter que acordar".

a vida de al.

Em "Uma Verdade Inconveniente" Gore fala sobre o aquecimento global de forma surpreendentemente acessível. De pé, ao lado de um enorme ecrã, bem maior que aquele que costuma usar na projecção de slides, fala sobre inundações, secas, epidemias e vagas de calor mortal que irão ocorrer, caso não se actue com rapidez. O filme, realizado por Davis Guggenheim, mostra também o "background" de Gore como estudante idealista em Harvard, tentando atrair a atenção pública para questões ambientais.

Guggenheim, que realizou episódios das séries "24", "The Shield", "Serviço de Urgências", foi atraído pela trajectória pessoal de Gore. "Sou o tipo de realizador que adora emoções fortes e quando, após a derrota [nas eleições presidenciais], vimos Gore levantar-se e tentar salvar o mundo, senti que estava perante um acontecimento muito poderoso."

O filme vive de gráficos elaborados, tabelas computadorizadas, fotos, filmes de arquivo e animação. "A animação foi feita por uma das minhas filhas", diz Gore, orgulhoso, mencionando que tem três filhas e um filho. "A minha segunda filha mais velha, Kristin, viu toda a sua vida o meu "show de slides". Trabalhou durante três anos com Matt Groening [criador da série Os Simpson]. Escreveu e criou os nossos desenhos animados mas não quis ficar com todos os louros, explicando que se tratou de um esforço colectivo. Os argumentistas de desenhos animados trabalham em equipa. Matt Groening e a Fox cederam-nos a equipa de borla."

Gore também anda a discursar de borla. "Sou muito afortunado por ter tido sorte nos negócios desde que abandonei a política", admite. Fundou duas companhias: uma, com base em Londres, de fundos de investimento e uma cadeia pública de televisão por cabo, sediada em S. Francisco. Além disso, integra o conselho de administração da Apple e é consultor directivo da Google. "No entanto, passo a maior parte do tempo a promover os meus slides. Posso dar-me a esse luxo. Actualmente a minha mulher e eu estamos a atribuir 100 por cento dos lucros provenientes deste filme a campanhas educacionais, que por sua vez irão fazer anúncios nas cadeias de televisão norte-americanas e talvez venham a ter uma participação a nível mundial."

Ouvimos bem, a mulher de Gore também faz parte do projecto? Gore faz uma pausa. Olha a jornalista do Y nos olhos e diz: "Se acaso fizer dinheiro com isto acha que vou ser eu a decidir o que faço com ele? No, no, no, no", acrescenta, levantando o dedo indicador no ar. "Será que conhece o provérbio americano: "When Momma is unhappy then everyone is unhappy"?

É provável que a mulher de Gore não mande nele. Não obstante, Tipper Gore, sua mulher há 36 anos, está sempre do seu lado. Assim como Karenna, a filha mais velha, que trabalhou na campanha presidencial do pai, em 2000, e que acabou de publicar o seu primeiro livro, "Lighting The Way Nine Women Who Changed Modern America". Toda a família está acostumada a viver no epicentro do alvoroço. Ninguém, nem sequer Gore, estava preparado para o furacão Katrina. A equipa de produção do filme encontrava-se de facto a caminho de Nova Orleães quando o furacão devastou a região. Foi a natureza que se encarregou de levar à consciência de todos o tema do aquecimento global.

"Sim, o Katrina foi o despertar para milhões de americanos", admite. "Não sei se podemos dizer que tivesse sido o momento decisivo na mudança de mentalidade dos americanos, porque creio que ainda não atingimos essa meta. Mas ouço muitas vezes as pessoas dizer que o furacão Katrina as influenciou." Al Gore acredita que o planeta e as pessoas que nele vivem ainda têm longo caminho a percorrer. Acredita também que irão lá chegar.

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