Estrada fora

Numa reportagem sobre a rodagem de "98 Octanas" publicada no PÙBLICO há um ano, Fernando Lopes evocava a tradição do "road movie" e da série B americana clássica. Contava que tinha dado a ver aos actores o "They Live By Night" de Nicholas Ray - podia ter dado o matricial "Detour" (1945) de Edgar G. Ulmer mas aí, ficando embora com todo o negrume patológico e existencialista da série B "de estrada", perdia a figura do par, do par acossado em fuga constante, que o filme de Ray categoricamente expõe. E o par, mais do que as autoestradas, mais do que a procura (e a presença) de um insólito urbanismo desenraizado (material proveniente do livro "Cimêncio" de Diogo Lopes e Nuno Cera, primeira inspiração do filme), é a figura dominante de "98 Octanas".

Evidentemente, Lopes é o primeiro a saber que não está a fazer nem "They Live by Night" nem "Detour", assim como sabe que elementos como esses (o par, a série B, o road movie) estão entre aquilo que a época "pós-clássica" mais recuperou do classicismo (do classicismo "marginal") do cinema americano, por entre o reconhecimento, a vénia e a apropriação modelar - assim estabelecendo novas "matrizes", tão poderosas como as originais.

Este arrazoado todo para chegar aqui: vê-se "98 Octanas" e, se parece claro que com a sua inspiração clássica não mantém mais do que uma relação longínqua, também se torna clara (e depressa) a sua proximidade com esses outros modelos pós-clássicos. Godard à cabeça, especialmente o "Pierrot le Fou", que se diria evocado, de modo directo, nalguns planos e nalguns diálogos (várias "rimas" para o célebre "je m"apelle Ferdinand").

Estruturalmente, não estaremos assim tão longe desse ou doutros Godards, sobretudo daqueles em tudo parte de um dispositivo narrativo minimalista: há um homem (Rogério Samora) e uma mulher (Carla Chambel) que se encontram e formam um par, praticamente do nada. Seguem viagem juntos, sendo que as peripécias decorrentes parecem valer menos por si do que pelo contributo que dão a uma ritualização (ou a uma "mise-en-scène") do par, espécie de teste permanente à transformação de uma "improbabilidade" numa "possibilidade" (que é, claro, um tema bem godardiano).

Se o princípio subjacente a "98 Octanas" é forte, torna-se difícil dizer onde está (e por que está) a raiz do que nos parece ser o seu falhanço. Paradoxalmente, dada até a preponderância do par central, dir-se-ia um filme hesitante entre seguir uma aproximação algo "hierática" às personagens e amenizá-la, abrindo as portas ao episódico e ao anedótico - entre ter "figuras" ou "personagens" o filme não se decide, como se quisesse ter as duas coisas e assim adulterasse as primeiras sem ganhar as segundas.

Talvez por isso a preocupação "biográfica" (de modo mais exemplar, a sequência, no fim, com a avó da rapariga) pareça sempre irrelevante, pura dispersão de energia. Sem centro, "98 Octanas" perde um fio condutor "necessário", vivendo de "clarões" (um longo plano na praia, com vento e ondas) sem sequência, e de diálogos que, sendo artificiosos e fugindo constantemente ao naturalismo, às vezes são capazes de "cerrar" o filme e os seus protagonistas, mas demasiadas vezes ficam como que perdidos no ar, "pendurados" numa deriva que fica sempre por resolver.

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