"Muitos destes jovens não sabem o que é um carinho, um elogio"

Um cantor solta metáforas para ilustrar a vida no Lagarteiro. Um grupo, os Bandidos, garante que não usa pistola. Para integrar e para demonstrar que os jovens dos bairros sociais "têm muito valor", a associação CAOS organizou o primeiro festival hip hop de Campanhã. Por Nuno Amaral (texto) e Fernando Veludo (fotos)

"Eu tenho orgulho em ser do bairro. Sou do bairro até morrer. E quem não gostar que se vá..." Pako não completou a rima porque a mãe estava na assistência. A letra hip hop foi, no entanto, corroborada pelo resto da plateia. Com o microfone na mão, Pako descansou a mãe. Noutra letra, em inglês, disse-lhe para não se preocupar. Que tinha um emprego. Que não era um marginal. Que estava em Inglaterra, apesar de ter nascido no Bairro do Lagarteiro, no Porto. As palmas explodiram. O jovem é admirado. Afinal, o músico-apresentador escapou ao fado que, por norma, confina estes jovens ao universo do bairro.Pako, cuja carreira vai percorrendo a Europa, co-organizou com a associação juvenil CAOS (Coragem Acima de Outras Situações) o festival de hip-hop dedicado aos jovens dos bairros sociais do Lagarteiro, do Cerco e de São Vicente de Paulo. O palco instalado na Praça da Corujeira, em Campanhã, recebeu vinte actuações. "Estes jovens aderiram muito bem à ideia. Desde que lhes falámos no festival, não parámos de receber telefonemas. Alguns ensaiaram em casa, sozinhos", expôs Jorge Vinhas, da CAOS.
Fumava-se de tudo na assistência. Jovens de bonés e brincos colocavam um isqueiro aceso em cima de uma mão semifechada. "Sim, estou a fazer um charro, toda a gente fuma, qual é o mal?", reagia J.B., morador no Bairro do Cerco. Em palco, Tiago, do Bairro do Lagarteiro, soltava metáforas contra o poder instituído. "Pela boca de Rui Rio, somos o Porto esquecido. Comentários de um cota, que se cá entra está...".
"Sim, é isso mesmo", explicava, depois da actuação. "Esse homem tirou-nos tudo. No Lagarteiro, não há equipamentos. Nada. A única coisa que os jovens fazem é conversar ou fumar droga e cantar." Ao lado, um outro jovem anuía com a cabeça. A CAOS logo alertou que, além do IPJ, a Câmara do Porto também patrocinou o festival. E estava cheio, aquele canto da Praça da Corujeira. Famílias inteiras a assistirem às actuações. Jovens empoleirados em grades. Miúdos a dançar. A cantar. A rir. "Quisemos pô-los a criar. A soltar esta revolta que acumulam de uma forma salutar", pontua Jorge Vinhas.
O "núcleo duro" da CAOS é formado por dez pessoas. Desde há sete anos que tentam "estimular" os jovens dos bairros sociais e apoiá-los em actividades que podem ir desde um torneio de futebol a este festival de hip hop. "Só nesta freguesia há 13 bairros sociais", vinca. Ao todo, estima, a CAOS trabalha com "centenas de jovens".
É em Campanhã que se situam os bairros do Cerco e do Lagarteiro, tradicionalmente conotados com o tráfico e o consumo de droga. Uma herança pesada, em suma. "Este cenário é o resultado de muitas políticas erradas. Muitas. Há muito preconceito e contingências económicas. É uma herança, de facto, muito pesada", sustenta Vinhas. Pela experiência acumulada, o dirigente da CAOS também arrisca uma terapia: "Temos de ir integrando estes rapazes e raparigas. Dar-lhes atenção. Demonstrar-lhes que têm valor. Porque têm mesmo".
Já a noite ia longa, e as Meninas do Lagarteiro arrancam um enorme aplauso. Em palco, dançam em poses sensuais. É o resultado de um ano de "ensaios". Segue-se um grupo com CD já à venda, os Bandidos. Outro aplauso. E outra metáfora: "Sou bandido, mas sem pistola no cinto. Não uso 6.35 [mm]".
Jorge Vinhas conhece os jovens dos bairros quase todos pelo nome. Conhece-lhes a sensibilidade. O feitio. O ritmo. Ainda o festival estava no início, e já antevia o "provável". "Esperemos que corra bem. Muitos jovens juntos e de bairros diferentes, pode dar problema." Minutos depois, surgia a zagarata. Dezenas de rapazes começam aos empurrões. Uns saltam. Outros gritam. A pequena multidão agita-se. Do palco, o animador Pako tentava serenar os ânimos: "Então, respirem fundo. Isto é uma festa!".
Os rapazes continuavam. Saem do local da assistência e a escaramuça arrasta-se para um dos lados. Jorge Vinhas percebe os sintomas. E as reacções. "São carências afectivas. Muitos destes jovens não sabem o que é um carinho, um elogio."

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