Berlim reencontra-se com Brecht, 50 anos depois da sua morte

A estreia da Ópera dos Três Vinténs, no remodelado Admiralspalast, deu início às comemorações

Foi numa sala de espectáculos mítica da Berlim dos anos loucos, recém-restaurada e ainda a cheirar a tinta - o Admiralspalast - que sexta-feira à noite os berlinenses redescobriram a Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht, o dramaturgo alemão que, há exactamente meio século, morreu, de ataque cardíaco, aos 58 anos.Hitler ainda não tinha chegado ao poder, eram os anos entre as duas guerras, da República de Weimar, das experiências artísticas, dos teatros, cinemas e cabarets, do jazz e do dadaísmo - foi nessa Berlim fervilhante e glamorosa que, em 1928, Bertolt Brecht e o compositor Kurt Weill estrearam a Ópera dos Três Vinténs, no teatro onde em 1949 Brecht fundaria o Berliner Ensemble, a dois passos do Admiralspalast.
O mundo de pedintes, ladrões e prostitutas criado por Brecht teve um extraordinário, e inesperado, sucesso logo nessa noite de estreia, antecedida por um total caos, com ensaios até às cinco da manhã, músicas a serem trocadas até ao último minuto, e toda a gente a prever uma catástrofe.
O regresso da Ópera no 50.º aniversário da morte de Brecht - agora com encenação do austríaco Klaus Maria Brandauer - foi igualmente caótico. As obras no Admiralspalast estavam atrasadíssimas, e muitos berlinenses estavam convencidos de que a peça não iria estrear-se. Mas estreou-se, e - ao contrário do que aconteceu em 1928 - foi recebida com alguma frieza. Os actores (entre os quais se destaca Campino, cantor do grupo punk Die Toten Hosen, na sua estreia teatral, no papel de Mac da Naifa) foram aplaudidos, mas Brandauer foi assobiado por uma adaptação que muitos consideraram demasiado convencional, sem qualquer referência a questões políticas contemporâneas.

Fuga ao nazismo e exílio Brecht era um autor político. Com a sua teoria do "teatro épico" pretendia despertar as consciências dos espectadores para a crítica do capitalismo e das injustiças sociais. "Queria que a postura crítica dos espectadores em relação ao teatro se traduzisse numa postura crítica em relação à própria sociedade", explicou Stephen Brockmann, da International Brecht Society, à Deutsche Welle. Brecht queria, no fundo, que as pessoas deixassem o teatro com vontade de mudar o mundo.
Foram as suas posições políticas que o forçaram a fugir da Alemanha depois da chegada de Hitler ao poder, em 1933. Durante a década seguinte viveu na Dinamarca, na Suíça, na Finlândia, antes de tentar instalar-se nos Estados Unidos. Mas aí as suas simpatias comunistas despertaram as atenções do Comité sobre Actividades Antiamericanas, que o interrogou - um episódio que (juntamente com o facto de não ter conseguido vencer em Hollywood) o levou a emigrar para a desaparecida República Democrática Alemã (RDA), tornando-se um dos poucos intelectuais a aí viver voluntariamente. Foi em Berlim-Leste que morreu.
O exílio na RDA - que o país aproveitou devidamente, apresentando-o como um intelectual do regime, embora ele nunca tenha pertencido ao Partido Comunista - tornou-o uma figura mal-amada pelo mundo literário do pós-guerra na República Federal Alemã, mas admirada por grande parte da esquerda europeia.
É difícil avaliar hoje o impacte do autor de peças como Mãe Coragem, Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny ou A Resistível Ascensão de Arturo Ui. Jorge Silva Melo, director artístico dos Artistas Unidos, disse à Lusa que se assiste "a um redescobrimento de Brecht por uma geração que não está muito marcada por certas peças dele do ponto de vista ideológico e conceptual". Claus Peymann, director do Berliner Emsemble, o teatro fundado pelo dramaturgo e pela sua mulher Helene Weigel, considera que "o Brecht político tem um grande futuro" e que ele é "o poeta da antimundialização". No entanto, segundo uma sondagem da revista Bücher, 42 por cento dos alemães nunca leram uma obra dele.
Mas, provavelmente, o mais duro para Brecht seria saber que, 50 anos depois da sua morte, a sua ópera anticapitalista está novamente em cartaz em Berlim - com o patrocínio do Deutsche Bank.

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