Quem ganha perde?

Israel perdeu, mas pode ainda atingir os seus objectivos. O Hezbollah ganhou, mas perde a sua margem de manobra. O Governo libanês sai inesperadamente reforçado. Teerão demonstrou a sua capacidade de desestabilização. Os Estados Unidos são o grande ausente da diplomacia no Médio Oriente

Aprovada a resolução da ONU sobre a cessação das hostilidades - mas ainda com uma ofensiva terrestre israelita em curso no Sul do Líbano e com o Hezbollah a prometer atacar enquanto Israel não retirar - esta fase da guerra está prestes a encerrar-se. É cedo para dizer se acabou ou se foi apenas suspensa, até um conflito mais largo. As primeiras notas estão à vista.

1. Por vezes um país tem de levar uma bofetada na cara para despertar para a mudança da realidade à sua volta, escreve o analista militar israelita Zeev Schiff. Israel já passou por essa prova em 1973, durante a guerra do Yom Kippur, quando foi surpreendido pelo Egipto, e na Intifada de Al-Aqsa, em que experimentou a mais longa fase de terrorismo da sua história. Nesta guerra, e pela primeira vez, o exército foi incapaz de proteger a frente interior: nunca Israel tinha sido alvo de um bombardeamento metódico, ao longo de um mês, com um milhão de pessoas a viver em abrigos. A sua força aérea e os seus tanques são hábeis para destroçar exércitos, o muro de segurança diminui o fluxo de bombistas suicidas, mas os mísseis atravessam muros e fronteiras.
Os actuais dirigentes israelitas dificilmente resistirão às "comissões de inquérito" que se anunciam. O primeiro-ministro Ehud Olmert, o ministro da Defesa, Amir Peretz, o chefe do estado-maior, general Dan Halutz, não serão poupados. Ao longo de um mês, "não houve erro que não tenham cometido", escreveu um analista. Os cidadãos não perceberam a condução da guerra. Israel deverá rever não apenas a sua doutrina militar e inventar uma dissuasão contra as "novas ameaças", como o Hezbollah, mas também repensar a sua política palestiniana.
"Israel tem de tornar claro que se for atacado fará pagar um duro preço estratégico aos inimigos. Ao mesmo tempo não pode ignorar o que há muito sabe: o poderio tem limites, sobretudo para um pequeno país", conclui Schiff no seu balanço da guerra.
Este conflito marca o fim da doutrina Sharon da "separação unilateral", tal como da política de "estrangulamento" do governo do Hamas. Se Israel quer sair da Cisjordânia, deverá negociar com o Hamas, diz Schlomo Ben Ami, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros. Não se trata da paz mas tão só de um acordo pragmático que daria a Israel segurança na fronteira palestiniana e marcaria para o Hamas o fim do ostracismo. Com uma vantagem: impedir uma frente Hamas-Hezbollah, dominada pelo Irão, o pesadelo estratégico que foi um dos motivos da guerra.
Israel não derrotou o Hezbollah. Ao bombardear o Líbano perdeu "a guerra das imagens". Mas pode ainda atingir os seus objectivos, o principal dos quais é a mudança do statu quo libanês e o afastamento da ameaça iraniana da fronteira norte. A curto prazo depende do envio duma força internacional, cujo perfil é ainda nebuloso. Politicamente, a chuva dos mísseis e a visibilidade da ameaça iraniana podem favorecer Israel, levando a comunidade internacional a forçar a neutralização do Hezbollah.

2. Inesperadamente, o frágil Governo libanês sai fortalecido da guerra. Com a ajuda da Europa e dos Estados sunitas, o primeiro-ministro Fouad Siniora fez uma manobra brilhante que retirou a iniciativa ao Hezbollah e desbloqueou o processo do cessar-fogo: a decisão de enviar o exército para o Sul do Líbano. Hassan Nasrallah, líder do movimento fundamentalista xiita, é o vencedor na "rua árabe". Por maiores que sejam as baixas não foi vencido e resistiu ao mais potente exército da região: basta-lhe "reemergir do bunker e proclamar vitória". O Líbano era até agora seu refém. Mas, apesar da súbita popularidade, a sua margem de manobra tenderá a diminuir. Siniora não o pode desarmar pela força. Mas doravante ele deixa de poder decidir da paz ou da guerra. A sua conexão iraniana levou à demolição do Líbano e os libaneses não apreciaram.
Analistas e diplomatas israelitas, árabes, europeus e americanos falam na necessidade de envolver a Síria no futuro processo político, de modo a romper o eixo Teerão-Damasco e inutilizar a ameaça Hezbollah.

3. O dilema sírio conduz ao paradoxo americano. Os EUA quiseram que Israel fizesse esta guerra para destruir o Hezbollah, no quadro da sua "guerra ao terrorismo", para no fim Condoleezza Rice aparecer "a salvar Israel de si mesmo" e a "pôr termo a um banho de sangue sem dar ar de ser uma rendição", escreveu Schmuel Rosner, correspondente do Ha"aretz em Washington. Na prática, os Estados Unidos foram os grandes ausentes da diplomacia, o que permitiu à França surgir como actor central. O francês Pierre Lellouche, presidente da Assembleia Parlamentar da NATO, fez soar o alarme: "Os EUA estão doravante marginalizados no Médio Oriente, quase fora de jogo. O facto de Rice não ter sequer podido ir a Beirute diz tudo sobre o nível do ódio anti-americano no mundo árabe."
"Os Estados Unidos não têm efectivos canais diplomáticos para gerir a situação, quanto mais para a resolver", explicou ao Washington Post Flynt Leverett, ex-colaborador de Bush. O ex-subsecretário de Estado Richard Armitage, o último alto responsável americano a visitar Damasco em Janeiro de 2005, disse numa entrevista: "É de loucos, penso, passarmos o tempo inteiro a falar com os nossos amigos e não com os inimigos."
Richard Holbrooke, antigo embaixador de Clinton na ONU, escreveu há dias: "O abandono duma activa diplomacia no Médio Oriente desde 2001 levou a uma maior violência e ao declínio da influência dos EUA. Outros estão ávidos por preencher esse vazio (notem a súbita emergência da França como actor chave no actual surto diplomático)."

4. Convém lembrar que a guerra Israel-Hezbollah não tem apenas a dimensão anti-sionista, mas é também "uma guerra por procuração" entre o Irão e os EUA. A Administração Bush está a perder o confronto com Teerão, que acaba de ganhar em todos os tabuleiros: demonstrou o seu poder de desestabilização e soube manipular a questão palestiniana para neutralizar o bloco dos Estados sunitas que se lhe opõe e denunciou o Hezbollah.Convém ainda lembrar que esta guerra se passa no caótico "novo Médio Oriente" ontem descrito no PÚBLICO pelo general Loureiro dos Santos. Personagens como Henry Kissinger ou Zbigniew Brzezinski apelam, em vão, a uma negociação directa de Washington com Teerão, antes que o pior aconteça.
"Os americanos - escreve no Figaro o islamólogo Olivier Roy - estão numa situação esquizofrénica: recusam-se a falar com os "Estados párias", mas renunciaram a democratizá-los por temor, no caso da Síria, de uma vitória da Irmandade Muçulmana, e, no caso do Irão, de um agravamento da situação no Iraque e no Golfo. Em resumo, fala-se da guerra sem a fazer e recusa-se a diplomacia, o que tem como consequência deixar o campo livre a Damasco e Teerão."

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