Será possível um modelo de escolaridade pluralista?

Observamos, analisamos e avaliamos a diversidade cultural, religiosa, étnica e racial que caracteriza a sociedade portuguesa actual. Não faltam por aí reportagens, programas televisivos e análises académicas que mostram Portugal como realidade plural que sente a influência destes Outros - na sua economia, sociedade, cultura. Não obstante, permanecemos negligentemente passivos e, às vezes, cometemos o erro de analisar os insucessos da integração de grupos "marginais" como algo de endógeno, próprio daquelas culturas. Apesar de tantos estudos, não conseguimos pensar em políticas de inserção e integração social de sucesso, porque falhamos sempre na identificação e uso adequado das fontes e dos canais de acção que maior efeito teriam na superação destes fenómenos sociais. Partilhamos os mesmos espaços com base na desconfiança e no medo, permanecemos ignorantes e coniventes com os movimentos de exclusão e segregação. Hoje, mais do que qualquer ideologia, política, ou religião, são os meios de comunicação e a escola que maior poder detêm na formação e formatação do pensamento e das ideias dos sujeitos sociais. A política e a religião são dois instrumentos de onde surgirão discursos que poderão, porventura, ser utilizados para efeitos de legitimação ou não de elementos que já serviram para socializar o sujeito. São portanto secundários face à escolarização e aos efeitos que os media têm no ser social moderno. A escola é o meio, logo a seguir à família, onde somos socializados, aprendemos os valores mais importantes e passamos mais tempo. Os meios de comunicação que formatam muitas das ideias que os pais destas crianças transmitem, e a própria linguagem do senso comum que utilizam (ainda hoje ouvi uma mãe no supermercado a dizer ao filho que escolhia cereais mais caros: "És um hezbollah!"), ou os impactos que têm os programas televisivos nas crianças são exemplos claros e objectivos da força que exercem estes meios de comunicação na formação de modelos de personalidade social.
É precisamente com o impacto da escola que me preocupo neste momento. As férias grandes servem, ou deveriam servir, para passarmos mais tempo com os nossos filhos, para crescermos com eles e vê-los crescer debaixo dos nossos olhos, para pensar nas expectativas para o novo ano lectivo. Não, não são apenas os livros, os materiais e as mochilas que me preocupam. A minha preocupação é outra, provavelmente a de pais que porventura já andaram nas escolas portuguesas e que são filhos de culturas contrastantes relativamente àquela que se diz portuguesa e que se ensina nas escolas deste país.
Como sou e sempre fiz parte desse Outro que somos nós todos, pergunto-me como será a vida desses miúdos e graúdos que vão para a escola? Será possível sentirem que existe algum tipo de continuidade entre as suas casas e famílias, as suas vivências e experiências familiares ou comunitárias e a vivência na comunidade escolar? Ou será que vão sentir uma profunda ruptura entre um mundo e o outro? Será que a escola poderá criar um vácuo tão grande entre o saber doméstico e o saber escolar, tornando o desafio de aprender ainda mais difícil do que é, levando muitas vezes a desistir antes de tudo acontecer?
Daquilo que conheço de algumas realidades minoritárias em Portugal, a ruptura e desconexão entre estes mundos no processo de socialização escolar é o que mais frequentemente acontece. O mais recente encontro do ACIME (Alto-Comissariado para a Integração e Minorias Étnicas) no Convento da Arrábida revelou esta realidade nas mais variadas formas. Se os conteúdos curriculares parecem alienados do Portugal contemporâneo e das realidades lusófonas, e se o muçulmano é desde sempre, e muito mais hoje, o eterno "infiel", o "bárbaro", o "invasor", esquecendo-se o que ficou dessa herança civilizacional, já o negro, o chinês, o indiano, o goês, o srilanquês, e tantos outros, esses nem "lugar" têm na história desta nação!
A historiografia selectiva e desprovida de carácter de continuidade não é defeito só dos curricula escolares portugueses. De acordo com outros pensadores, ela é o produto a partir do qual se pretende construir uma nação, definindo e delineando de forma clara as suas fronteiras geográficas, culturais, religiosas e raciais. Só que o problema que este tipo de abordagem levanta, seja aqui ou em qualquer outro país do mundo, são as rupturas civilizacionais que, afinal de contas, não são reais, porque a história da humanidade é ela mesma fruto da hibridez, da transculturalidade e de miscigenações continuadas. A cultura do hip-hop e música rap e o efeito que produz em jovens brancos ricos das regiões urbanas da Europa, ou a cerimónia da Ashura (que recorda o martírio do imã Hussein) celebrado por iranianos xiitas nas ruas centrais de Nova Iorque ao som de música da indústria do Bholiwood (filmes indianos modernos) faz-nos reconhecer a importância dos efeitos das culturas globalizantes. O fenómeno não é novo na história da humanidade; outros povos e culturas se cruzaram e deram origem aos fenómenos civilizacionais mestiços mais extraordinários. Provavelmente, na ausência da Internet, as novidades não correriam ao ritmo a que hoje correm. O que creio ser realmente um produto novo dos nossos tempos, e consequentemente, o que provoca aquilo que alguns chamaram erradamente "choque civilizacional" é esta relutância e resistência em conhecer o Outro, e em, de facto, integrar, compreendendo melhor, o seu saber, a sua riqueza cultural, os valores que o tornam único na sua diferença.
Não tenho propostas concretas para novos modelos educacionais, nem poderia, e reconheço a importância de outros parceiros na discussão e formulação de modelos pluralistas para a educação na modernidade culturalmente diversa. Lembro-me apenas de uma situação feliz na experiência da minha filha ao entrar para uma creche em Cambridge, no Reino Unido. Nessa escola pedia-se a todos os pais, que vinham das partes mais diversas do mundo, que partilhassem com a escola os dias mais importantes do seu país, da sua cultura, ou religião. E que ajudassem a escola na celebração destes dias, com aquilo que lhes fosse possível fazer. Para mim isto significou a continuidade entre a casa e a escola, entre a cultura de origem e um projecto de vida na multiculturalidade e na diferença apreciada e valorizada onde se pode aprender algo mais sobre a vida em geral. Um projecto onde pais e professores se apresentam como os agentes co-responsáveis na educação e formação cívica.
Estou convencida de que, independentemente do modelo educacional pluralista que possamos construir, esse deve passar pela reeducação e formação aprofundada dos nossos professores. Não chega a mestria curricular. É preciso ter mais conhecimentos de cultura geral. É preciso ter predisposição para o pluralismo. Pessoalmente herdei valores de uma cultura onde da palavra do professor nunca se deve duvidar, pelo que me preocupo com o seu papel. Não posso pois aceitar que uma professora pergunte a um adolescente de 14 anos: "Então, tu que és muçulmano, diz-me lá o que pensas sobre o Bin Laden!" Não haveria ele de ter uma opinião sobre o aborto, ou sobre questões ecológicas, ou sobre o futebol? Porquê Bin Laden? E ela não faz ideia da violência que este tipo de ignorância pode causar na forma como uma criança constrói a sua identidade face à sua própria nação.
Já fomos capazes de investigar, estudar, analisar e apreciar a diversidade social e cultural portuguesa, embora muitas vezes tenhamos a tentação de nos deixarmos levar pelas generalizações e hegemonizações apressadas. É meio caminho andado. O desafio agora é ultrapassar este fascínio pelo exotismo face a culturas aparentemente distantes para assumir a construção de uma democracia efectivamente pluralista. E esta passa indubitavelmente por uma remodelação do projecto educacional, desde a infância até à idade adulta, incluindo a formação de formadores numa perspectiva pluralista, ou, se quisermos, de construção de uma sociedade onde os seus membros se revejam nela, porque lhes é aberto o espaço para a efectiva integração e participação cívica. Membro da comunidade ismaelita

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