Uma "oportunidade de mudança" no ex-Zaire

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Os congoleses votam pela primeira vez desde 1960 e depois de seis anos de guerra Nic Bothma/AP

Nos 32 anos que esteve no poder, o antigo ditador Mobutu Sese Seko não investiu na construção de caminhos-de-ferro nem de estradas com medo que viessem a ser usadas por soldados rebeldes para tomarem o poder em Kinshasa. É o que se diz na imensa República Democrática do Congo, onde se realizam este domingo as primeiras eleições multipartidárias desde as que foram organizadas em 1960, ano da independência.

A votação de hoje já foi considerada a "mais ambiciosa" de sempre por se realizar no segundo maior país da África subsariana, destruído por seis anos de uma guerra que envolveu sete Estados africanos (Angola, Namíbia, Zimbabwe, Chade, Uganda, Ruanda e Burundi) e fez quatro milhões de vítimas (entre 1997 e 2003) e onde entre os candidatos à presidência estão ex-líderes rebeldes. Para o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, estas eleições são "um símbolo de esperança" para todo o continente.

O voto é uma forma de confirmar a paz e virar a página depois de "muitos anos de perdas", apesar dos incidentes violentos que marcaram a campanha: várias pessoas morreram em confrontos e o ilustre jornalista Bapuwa Mwamba foi assassinado na sua casa. Na quinta-feira à noite quatro pessoas morreram apanhadas no fogo de polícias e guardas do candidato ex-rebelde Jean-Pierre Bemba, no seu comício em Kinshasa.

"Estamos a dar os primeiros passos", disse ao PÚBLICO por telefone a partir de Kinshasa a jornalista Jackie Betoko, da rádio e televisão Digital Congo. "Existem receios de violência na divulgação dos resultados. Mas os congoleses vêem na votação uma oportunidade de mudança e de reconstruir o país."

Um dos principais desafios é "explicar às pessoas que haverá perdedores", continua. O outro será levar os eleitores das zonas mais remotas a votar num país equivalente a dois terços da Europa Ocidental, destruído e com as poucas infra-estruturas herdadas do tempo de Mobutu.

O marechal acabou mesmo por ser deposto por uma rebelião organizada por Laurent Désiré Kabila que em 1997 conquistou Kinshasa e governou até ser assassinado por um guarda-costas em 2001. Sucedeu-lhe o mais velho dos seus dez filhos, Joseph Kabila, então com 30 anos. Na altura, surpreendeu diplomatas e observadores ao prometer a paz e a realização de eleições, escreve a BBC on-line. Hoje com 35 anos e cinco de experiência de governação, é o favorito nas eleições nas quais os 25 milhões de eleitores também escolhem um Parlamento.

Regresso dos mobutistas

De acordo com uma sondagem independente em Kinshasa, conduzida numa altura em que ainda havia 21 por cento de indecisos, e citada pela AFP, Joseph Kabila surgia como vencedor da primeira volta com quase 38 por cento dos votos, seguido de longe pelo dirigente da oposição Antoine Gizenga (com 7,5 por cento), e Jean-Pierre Bemba (com 6,6 por cento das intenções de voto).

Além de Bemba (que liderava a rebelião apoiada pelo Uganda), concorre também o outro ex-líder rebelde Azarias Ruberwa (ex-chefe da rebelião apoiada pelo Ruanda). Ambos lutaram na guerra contra Kabila, depuseram as armas e ocuparam cargos de vice-presidentes no governo de transição saído dos acordos de paz.

Entre os 33 candidatos à primeira volta das presidenciais, está também o filho de Mobutu, Nzanga Mobutu - numa coligação de saudosistas do ex-ditador - e Guy-Patrice Lumumba, filho do antigo primeiro-ministro eleito em 1960 e assassinado na conturbada fase que se seguiu à independência.

O grande ausente é o histórico da oposição Etienne Tshisekedi e um dos signatários dos acordos de paz de 2003, que boicota estas eleições.

Paz no país, guerra no Leste

Mas apesar do acordo assinado há três anos pelo Governo, rebeldes e oposição, várias milícias continuaram a operar no Nordeste do país, mantendo uma guerra que continua a provocar muitas vítimas civis numa zona onde se concentram as minas de ouro, as reservas de diamantes, cobalto, cobre e outros minérios e para onde a ONU destacou a maioria dos seus 17.500 capacetes azuis da maior força de manutenção de paz da sua história. As duas principais milícias que operam na região de Ituri aceitaram entregar as armas e permitir a livre circulação de pessoas para a votação. Um sinal de apaziguamento numa altura em que o principal receio da força de paz da ONU no terreno é que as milícias que destabilizam o Leste destabilizem as eleições. Mesmo assim, o instituto de pesquisa International Crisis Group alerta para outro risco: o de que a votação volte a mergulhar o país inteiro num conflito, ao destituir ex-rebeldes e políticos de "lucrativos cargos governamentais".

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