O lugar do morto

Não há lugar para um homem que não pode parar em lugar nenhum. Para Antonioni, abandonar as personagens à sua sorte sempre foi a melhor maneira de acabar os filmes. Só a sua própria viagem pode continuar.

Onde estava Antonioni em 1975? De certa maneira estava fora, algures, "ailleurs". Temos a tentação irresistível de ler o título "internacional" deste filme, "The Passenger", "o passageiro", mais enigmático do que o "Professione: Reporter" para consumo italiano e europeu, como se ele se referisse também a Antonioni. No filme não é claro quem é de facto "o passageiro" - se, numa perspectiva alusiva e metafórica, Nicholson (que vai no "lugar do morto", em todos os sentidos imagináveis), se, mais literalmente, Maria Schneider, a sua "pendura".

Mas Antonioni, ele próprio, era por esta altura um passageiro, um viajante. Já não filmava em Itália desde 1964 e "O Deserto Vermelho" (à excepção de um episódio para um filme de "sketches" em 1965). Esteve em Inglaterra a filmar a "swinging London", em "Blow Up - História de um Fotógrafo" (1966), e a emergência de uma cultura jovem, "pop" e fútil, idólatra e inconsistente; dai seguiu, num "raccord" que hoje parece perfeito, para os Estados Unidos e para o bizarríssimo "Zabriskie Point" (1970), longa cerimónia fúnebre para as euforias da "contracultura" dos anos 60, com música dos Pink Floyd (de onde Syd Barrett entretanto já partira, passageiro da sua alienação - é impossível escrever sobre Antonioni sem mencionar esta palavra, "alienação"). Antes de fechar o contrato para três filmes com a MGM que o levara a Londres e aos EUA, ainda passou pela China, para um documentário intitulado "Cheng Kuo" (1972), regresso àquele que foi o seu terreno de iniciação cinematográfica (a curta documental "Gente del Po", de 1943).

Ainda demoraria alguns anos até voltar a Itália - "O Mistério de Oberwald", de 1981, é um filme "germânico", e só em 1982, num filme, "Identifi cação de uma Mulher", durante muito tempo tomado como o seu derradeiro (até porque depois veio a trombose que lhe abanou fortemente a saúde), é que voltou propriamente a filmar a Itália em Itália. Hoje tem quase 94 anos e continua, tanto quanto lhe é possível, a filmar. 30 anos depois, por outras razões ou pelas mesmas, o que dissemos acima continua a aplicar-se: Antonioni está fora, algures, "ailleurs", onde só ele saberá. Faz sentido, num cineasta durante décadas descrito como sendo da "alienação", essa expressão que se impôs como "mot de passe" para chegar ao seu cinema.

que vá tudo para o diabo.

Evidentemente, e regressamos a "Profissão: Repórter", falava-se da alienação num contexto político específico e vagamente marxista, e de Antonioni como relator de uma luta de classes surda e sibilina na Itália do pós-II Guerra. Os filmes "estrangeiros" iniciados com "Blow Up" vieram sacudir a coerência desta análise temática. A chave, pelo menos, deixou de abrir da mesma maneira, e deixou de abrir para o mesmo compartimento. Que fazer com estes filmes - no fundo, nem mais nem menos abstractos que os Antonionis "clássicos", "A Noite" ou "O Eclipse" - foi sempre uma boa pergunta, geradora de tantas perplexidades como de possibilidades de resposta.

Quando "Profissão: Repórter" foi recentemente reposto nos EUA, o crítico do "Village Voice", J. Hoberman, retomava noutros termos a chave "política". Falando de um plano em que se vê, no cabeçalho de um jornal, a data em que se passa a acção (Setembro de 1973), Hoberman afirmava que "Profissão: Repórter" era um filme sobre o fim do "romantismo do Terceiro Mundo" ("third-world-romantism"), lembrando e associando filme e data ao mês da deposição de Salvador Allende no Chile. O cansaço e o abandono (não escreveremos outra vez "alienação") deste repórter interpretado por Nicholson, que começa num deserto semi-fantasioso semi-realista povoado por guerrilheiros sobre cujas causas pouco ou nada somos esclarecidas, teriam uma dimensão simbólica - um grande "que vá tudo para o diabo" e uma redescoberta do individualismo, no ponto em que se toca com o egoísmo. Este Nicholson está farto de tudo, do que faz, das pessoas que entrevista, da mulher, da profissão, e manda tudo para o diabo. Troca de identidade com um morto de ocasião, e começa aí a sua viagem: será doravante um passageiro da vida de outrem, habitante de uma identidade alheia.

Não se terá, porventura, notado com a devida insistência a que ponto este "dispositivo" ficcional se assemelha ao arranque de tantos filmes de "suspense". Uma personagem de identidade movediça obrigada a um movimento contínuo - isto podia ser (e é) o princípio de não-sei-quantos filmes de Hitchcock. "Profissão: Repórter" não é hitchcockiano mas, nos padrões do cinema de Antonioni, é o que há de mais parecido com um filme de acção. Nicholson não pára quieto, corre a Espanha toda de Barcelona a Andaluzia para ver se apanha um "ferry" para Marrocos. É perseguido por várias pessoas, com as mais diversas intenções - uns (a mulher, o produtor) porque sabem que existe uma relação qualquer entre este homem e o homem que conheciam e que julgam morto, outros (que nunca vemos) porque pensam que este homem é mesmo o homem que não sabem que está morto. Mecanismo de "thriller" em "off", adrenalina da fuga e do movimento em primeiro plano. Vê-se que este baile de máscaras é a coisa mais entusiasmante que acontece na vida de Nicholson, e que não há nada de mais revigorante para ele do que esta existência no "escuro", sempre em movimento sem saber para onde nem por quê. Viajante sem bagagem e deliciado com os prazeres da clandestinidade, vive tudo isto em euforia (o plano do teleférico em Barcelona, como se voasse sobre o mar). A descoberta da fonte da juventude completa-se com o encontro com Maria Schneider, estudante da arquitectura de Gaudí que será a sua "sidekick", "passageira" do "passageiro".

Não pode durar para sempre: Antonioni é "abstracto" mas não é "irrealista". Não há lugar para um homem que não pode parar em lugar nenhum. Quem se mete em sapatos de defunto acaba com eles calçados. O plano-sequência do fim, que na "gramática" do filme (nada baseada em planos-sequência) faz papel de "grand finale" apotéotico e "assinatura" do autor (sem deixar de ser, por isso, um dos mais prodigiosos planos-sequência da história do cinema - que o digam Scorsese ou de Palma), desenha um círculo e encerra, de facto, Nicholson, na lógica que involuntariamente pôs em marcha. Para Antonioni (vejam-se "A Aventura", "O Eclipse", "Blow Up") abandonar as personagens à sua sorte sempre foi a melhor maneira de acabar os filmes. Só a sua própria viagem pode continuar.

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