Ruy Athouguia Morreu o mais moderno dos arquitectos portugueses

Ruy Jervis d"Athouguia foi sempre moderno, nunca desistiu. Fez a Gulbenkian, o primeiro edifício do século XX a ser classificado como Monumento Nacional

Ruy Jervis d"Athouguia viveu a maior parte da sua vida em Cascais. Porque era incapaz de viver numa rua e sem sol à sua volta. Procurava fazer casas sem cantos escuros, onde a natureza, o pinhal de Cascais, pudesse invadir o interior. A mesma sensação que se tem quando se desce para o foyer da Gulbenkian: o verde afinal está mesmo ali à frente, entra pelos olhos dentro. O arquitecto morreu ontem à noite, no Hospital Pulido Valente, aos 89 anos. Depois de uma missa de corpo presente, hoje às 14h30, no Centro Funerário Santa Joana Princesa, será enterrado no Cemitério da Guia, em Cascais.
O que considerava ser "muito" seu era essa fluidez de espaço entre interior e exterior, o que o deixava "completamente louco" era a moda dos pós-modernismos, disse numa entrevista ao PÚBLICO em 1999.
Ruy Athouguia nasceu em Macau em 1917, porque o pai era oficial da Marinha. Veio de lá com um ano e meio e foi logo viver para Cascais. Começa a fazer o curso de Arquitectura em Lisboa, mas muda-se para o Porto para aí se formar em 1948: "Havia um arquitecto, que tinha por alcunha o "Cunha Brutos", que me chumbou sucessivamente em Desenho Arquitectónico. Desenho arquitectónico não era projecto, era desenho de arquitectura clássica. Com aqueles chumbos disse à minha família que não podia ser, que ia para o Porto."
A sua carreira de arquitecto começa em 1949, com o Bairro das Estacas e a Escola Primária do Bairro de São Miguel, em Lisboa: "Quando acabei o curso, era um jovem que estava todo virado para ir por aí por diante. Não olhar para trás. Apetecia-me abrir as asas e voar."
No meio do Bairro Alto, em Lisboa, o seu atelier era uma ilha dos anos 50 no primeiro andar de um palácio barroco, que ruiu em 2000, numa altura em que Ruy Athouguia ainda ia trabalhar algumas vezes por semana.
Só em 2003, aos 86 anos, teve o reconhecimento de uma carreira com a exposição monográfica Arquitectos da Geração Moderna: Ruy Jervis Athouguia, comissariada por Ricardo Carvalho e Joana Vilhena. No ano seguinte, a mesma exposição deu-lhe o Prémio Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA)/Ministério da Cultura na categoria de Arquitectura,
Distância da tradição
Foram os arquitectos da geração de Eduardo Souto de Moura, a seguir à de Álvaro Siza, que redescobriram Athouguia. Souto Moura visitou-o no atelier do Bairro Alto, numa espécie de homenagem ao mais puro arquitecto moderno do século XX português. "Adoro o Athouguia, é do melhor que há, um homem de que se fala pouquíssimo", disse também numa entrevista.
"Se em Portugal houve alguma radicalidade, alguma vanguarda, ela passou por Ruy Athouguia", disse ontem o crítico e historiador de arquitectura Michel Toussaint. "É o representante mais puro do movimento moderno em Portugal. É uma arquitectura que se distancia claramente da tradição", acrescenta.
Ao contrário de muitos da sua geração, Ruy Athouguia não se interessou muito pela revisão crítica do movimento moderno feita a partir dos finais dos anos 50 por nomes como Fernando Távora, um dos fundadores da chamada "Escola do Porto" e professor de Siza. "Uma revisão que procurou novos valores locais, olhar para as condições culturais específicas do país. Siza e Távora tentaram um diálogo com a tradição", afirma Michel Toussaint.
No Bairro das Estacas (1949-55), que fez com Sebastião Formosinho Sanches, tal como dizia a Carta de Atenas e o movimento moderno, os dois jovens arquitectos anulam o conceito de rua e quarteirão: "São quatro edifícios sobre pilotis [pilares]. Há um contínuo da natureza. Toda a superfície do terreno é pública."
É o arquitecto que "mais paradigmaticamente simboliza uma geração que ensaia linguagens de ruptura a partir do pós-guerra", diz Ana Tostões, crítica e historiadora de Arquitectura, "É o mais racionalista arquitecto da sua geração. Na Gulbenkian, o programa complicado é resolvido com clareza, distribuindo os vários espaços com actividades diferentes por volumes autónomos e com circulações muito bem resolvidas. E esse edifício-máquina é articulado logo à partida com a natureza e com o desenho do jardim."
Athouguia morreu, simbolicamente, no ano em que o Ministério da Cultura aprovou a classificação da Gulbenkian como Monumento Nacional, devendo ser a primeira obra de arquitectura do século XX a receber a distinção, quando o processo estiver terminado.

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