Eunice Muñoz

A caminhar para os 78 anos, a actriz retoma, no Auditório de Oeiras que leva o seu nome, o papel que Jessica Tandy consagrou no cinema. Não está a pensar em afastar-se dos palcos, e avança que em Março estreia uma peça no Teatro
Maria Matos, em Lisboa, com Diogo Infante. Humildade e insatisfação são palavras que mantém ao longo da carreira

A televisão é o moinho que cria as grande ondas de boatos relativos às estrelas que mantém na visão colectiva. Eunice Muñoz é uma grande senhora do teatro português, mas foram as suas participações em séries e mais recentemente, telenovelas, que a levaram a públicos mais vastos. E quando volta aos palcos após uma ausência de quatro anos, ouve-se no pequeno ecrã que Miss Daisy será a última peça da actriz que faz 78 anos a 30 de Setembro.Sentada num sofá no Auditório Municipal de Oeiras a que dá nome, e onde a peça Miss Daisy está em cena até dia 15, Eunice Muñoz afasta tal hipótese. "Isso é fantasia. Não estou a pensar sair dos palcos, a não ser que me aconteça qualquer desgraça, de resto não vejo nenhuma razão." E para confirmar, revela: "Em Março vou estrear uma peça norte-americana, no [Teatro] Maria Matos, e vou ter a grande alegria de voltar a contracenar com o Diogo Infante, que considero um excelente actor."
Foram efectivamente quatro anos sem fazer teatro - desde A Casa do Lago, dirigida pelo Filipe La Féria no Politeama -, mas a actriz não sente Miss Daisy como um regresso, na medida em que esteve sempre a trabalhar em televisão. Mas o teatro é o seu grande amor. "É o que eu mais amo, aquele em que eu mais me sinto preenchida, e que me dá o mais profundo prazer."
Miss Daisy é uma peça do norte-americano Alfred Uhry que se estreou em Nova Iorque em 1987 e teve versão cinematográfica dois anos depois. Aí, Jessica Tandy era a protagonista, uma idosa, viúva e independente senhora do Sul dos Estados Unidos do pós-Segunda Guerra Mundial a quem o filho obriga a aceitar um motorista negro, interpretado então, com uma imensa dignidade, por Morgan Freeman.
Agora, Eunice Muñoz tem como filho Guilherme Filipe e como motorista Thiago Justino. É uma peça em que a veterana actriz pode brilhar, mas muito exigente. Longa, com a protagonista quase sempre em palco, e com cinco sessões por semana. Eunice enfrenta a tarefa de peito aberto, mas é verdade que já caminha para os 80 anos - já teve uma crise de tensão alta no intervalo de uma sessão, que insistiu em continuar até ao fim, e existe uma pequena equipa que a ajuda em tudo o que necessita.
Não teve receio que a peça fosse fisicamente demasiado exigente para uma senhora que já não é uma jovenzinha? "Não sou nem jovenzinha, nem jovem, nem de meia-idade, vou fazer 78 anos! Mas sou, sempre fui, uma pessoa enérgica, mas, enfim, enérgica com perto de 80 anos não é a mesma coisa que ser enérgica com 30 ou com 40." Continua com o gosto de se movimentar, agradece a Deus ainda ter essa capacidade: "A esta altura já podia ter tais problemas [físicos] que não podia enfim mexer-me..."
Mas não sente necessidade de finalmente descansar? "Sim, mas quando chegar a um momento adequado." Mas sente-se, pelo calor da voz, que ainda não deverá ser para breve. "Sempre trabalhei tanto a vida inteira, desde muito miúda, gosto muito de trabalhar." E lembra como, aos 17 anos, num mesmo dia tinha aulas no Conservatório, depois gravava cinema (Camões) e à noite ainda fazia duas sessões no Teatro Variedades, com Mirita Casimiro e Vasco Santana.

Digressão por Espanha e Brasil
E com esta peça vai continuar a trabalhar. Miss Daisy vai ser reposta no auditório de Oeiras em Setembro, seguindo depois para o resto do país, Espanha e Brasil. A personagem, e a peça, foram apresentadas à actriz por Celso Cleto, o encenador, e não foi amor à primeira vista entre as duas, Eunice foi descobrindo Daisy, o que "levou o seu tempo".
Explica, no seu ritmo de voz muito pausado e pensado: "Quando li a peça, achei que não havia assim tanto para fazer na personagem como isso. Vi que, sim senhor, havia coisas em que a actriz podia fazer aproveitamentos, explorar a própria personagem, as suas reacções, a sua maneira de ser, a sua forma de sentir, mas só a partir de certa altura - ensaiamos diariamente, o trabalho é mesmo para isso - comecei a encontrar na personagem interesses, diferenças, contrastes."
Ou seja, encontrar aquilo que se encontra em todos nós, que é o facto de nem sempre "as coisas se ligarem". Quando alguém faz algo mas ao mesmo tempo fez outra coisa que não tem nada a ver com a anterior e que desmente tudo o que se pensava. "Estes personagens são ricas, e a Miss Daisy é efectivamente uma personagem rica de humanidade, de tiques, de rabugices, de mau feitio, mas ao mesmo tempo de um coração grande."
Eunice fez grande papéis - Zerlina, Mãe Coragem, Joana d"Arc -, mas não os escolheu, foram eles que vieram ter com ela. E abordou esses papéis da mesma maneira ao longo do tempo. De uma forma simples, se bem que reconheça que a simplicidade é o objectivo mais difícil de atingir. "Abordo exactamente da mesma maneira, não posso dizer que alterei muito a minha forma, o meu processo, talvez porque tive sempre uma grande preocupação em relação à simplicidade, e isso fez com que eu estivesse sempre actual."
Por fim, deixa algumas palavras para os jovens actores que vão ser formados no centro dramático de que vai ser a patrona. "O teatro absorve muito um actor, é preciso cuidado, senão começamos a ser devorados pela profissão. Ninguém venha para o teatro a pensar que vai ser um sonho cor-de-rosa. Há muita luta, muita decepção. Muitas vezes não consegui chegar onde queria chegar. Nunca fico totalmente satisfeita. Tenho muito boas recordações e críticas agradáveis, mas nunca permiti que isto tomasse conta de mim." E é com palavras como "humildade", "insatisfação" e "fugir da tendência para facilidade" de processos que se despede. Há maquilhagem para colocar, há roupa para vestir, há uma Miss Daisy para encarnar.

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