O que é que o reggae tem?

Jamaica All Stars e a mítica banda de Bob Marley juntaram uma aldeia global no parque de estacionamento, a "nova sala" da Casa da Música

A geração Morangos com Açúcar e a geração noite da mulher, famílias completas e filhos únicos, quarentonas de casaco de ganga à cintura e adolescentes de calças descaídas, cidadãos comuns e titulares de cargos políticos, surfistas com roupa de marca e activistas com roupa de feira - a tribo do reggae também estava lá (muitas rastas, o ocasional gorro jamaicano e gramática rastafariana na ponta da língua, basta juntar Skully Sims e o seu "Jaaaah!"), mas a tribo do reggae já é uma aldeia global.Pelo menos quando há lugares-comuns como The Wailers, onde personagens tão antagónicas como o activista pró-legalização da marijuana e o presidente do conselho de administração da Casa da Música (CdM) podem encontrar-se de igual para igual.
Foi assim, a madrugada de ontem (os Jamaica All Stars entraram em palco pouco antes da meia-noite, os Wailers cerca da 1h30), no parque de estacionamento da CdM: a primeira noite do Festival Reggae foi mesmo uma experiência de cruzamento, na fronteira entre o programa familiar e o alternativo. Quase como num centro comercial (dos grandes): havia de tudo, apesar do horário impróprio.

Sparrow Martin de fato completo
Foi preciso esperar mesmo muito para ver o DJ (aliás: o "selecta") Bob Figurante e o MC (aliás: o "toaster") Clandestino a anunciar o fenómeno da noite (muito mais do que os Wailers, que praticamente se transformaram numa banda de tributo aos Wailers, ou a Bob Marley): a fanfarra Jamaica All Stars, outro grande lugar-comum em que velhas glórias da música jamaicana como Sparrow Martin, Johnny Dizzy Moore e Skully Sims (Justin Hinds, o quarto fenómeno do colectivo reunido há dois anos pelo realizador francês Jean-Pierre Simonin, morreu em Março do ano passado) passam o testemunho a uma geração com menos 40 anos.
Foi bom ver Sparrow Martin de fato completo e panamá vermelho a colocar Skully Sims (o percussionista cego que foi tutor de Bob Marley) no centro do palco. Dá para perceber que, em tempos, Skully foi bailarino. Ainda é.
Apesar do nome, o Festival de Reggae começou por não ser de reggae: com o seu impressionante jogo de anca (um atributo generalizado, mas Skully Sims e o volumoso mestre-de-cerimónias são de outra divisão) os Jamaica All Stars fizeram a CdM recuar até às febres de sábado à noite de Kingston nos anos 50, até ao ADN caribenho (a comparação com outro dream team do arquipélago, os Buena Vista Social Club, não é assim tão forçada), que, mais ou menos descaradamente, faz parte do património genético do ska, do rocksteady e do reggae, até à libertinagem do jazz e ao groove do boogie, até à terra prometida ("Estamos de regresso ao Sião", anunciou Sparrow Martin a meio do concerto) e até Bob Marley.

Refrões comunitáriosSimmer down, uma das primeiras músicas gravadas pelo músico que globalizou o reggae, foi um dos únicos pontos de contacto entre os Jamaica All Stars e os Wailers, que vieram depois. Vieram tarde de mais. Em sentido literal e em sentido figurado: porque quando chegaram ao palco duas gerações já tinham ido embora (tinham trabalho ou escola) e porque pouco mais têm a acrescentar àquilo que fizeram nas décadas de 60 e de 70. Tal como há três anos, em Vilar de Mouros, os Wailers limitaram-se a gerir o património: fizeram tempo até ser mais do que altura de começar a debitar os standards, e aí a CdM esteve mesmo com eles, de Is this love? a No woman, no cry, passando por Waiting in vain, Could you be loved, Three little birds, One love e Buffalo soldier.
Mesmo que não tenham tido mais nada, os Wailers tiveram refrões comunitários. É sobretudo isso que o reggae tem: na madrugada de ontem, não precisou de mais nada para juntar cerca de duas mil pessoas num parque de estacionamento.
A Casa da Música encomendada a Rem Koolhaas previa dois auditórios. Oficialmente, continua a ser assim, mas na prática há três: o parque de estacionamento transformou-se na zona franca da CdM, e é sobretudo por lá que têm passado as grandes enchentes do novo equipamento (a última foi o Festival Mestiço). Na primeira conferência de imprensa como director artístico, Pedro Burmester assumiu, de resto, que os concertos no parque de estacionamento são para manter. Não exactamente nas mesmas condições, porém: ontem já deu para perceber que a CdM está disposta a fazer alguns investimentos para tornar o recinto mais praticável. O palco foi transferido para outra zona, mais confortável, do parque de estacionamento, e houve uma série de upgrades técnicos: dois ecrãs alimentados por uma régie de vídeo, para facilitar a visibilidade num recinto que não foi desenhado para servir um palco, uma iluminação mais competente, e um tratamento acústico mais profissional.

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