Câmara do Porto impõe "lei da rolha" para atribuir subsídios

Instituições têm de assinar contrato que as obriga a "abster-se de criticar publicamente o município"

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Rui Rio quer restringir as críticas ao seu executivo Estela Silva/Lusa (arquivo)

A Câmara do Porto decidiu impor regras na atribuição de subsídios, condicionando a sua atribuição à assinatura de um protocolo no qual as instituições ficam impedidas de criticar o município. Para os constitucionalistas ouvidos pelo PÚBLICO, trata-se de uma cláusula juridicamente nula e "moralmente inaceitável".

O primeiro subsídio (15 mil euros) ao abrigo deste novo protocolo foi concedido à Fundação Eugénio de Andrade, que ficou obrigada a "abster-se de, publicamente, expressar críticas que ponham em causa o bom-nome e a imagem do município do Porto, enquanto entidade co-financiadora da actividade da sua representada".

Entre a oposição PS e CDU, soaram céleres as críticas sobre o que qualificaram como "tentativa de censura", mas a proposta acabou por ser aprovada com os votos da coligação PSD-CDS liderada por Rui Rio, que dispõe de maioria absoluta. Os socialistas dividiram-se entre a abstenção e o voto a favor e a CDU votou contra.

"A administração não pode exigir que as entidades ou particulares abdiquem de um direito constitucional como condição para a obtenção de subsídios", aponta Jónatas Machado. Para o constitucionalista, a cláusula ou é inconstitucional ou é redundante. "Se essa cláusula for expressão do dever geral de respeito pelo bom-nome e reputação, é redundante porque esse dever resulta da lei geral; se pretender cercear o direito à crítica, obviamente que é inconstitucional porque os poderes públicos não podem condicionar o direito às subvenções à prévia renúncia por parte dos particulares de direitos constitucionalmente consagrados".

Seja qual for o entendimento, Jónatas Machado diz que as críticas que entidades subsidiadas possam dirigir ao município não podem legitimar a retirada do subsídio. "Jogar com a atribuição de subsídios não é um meio legítimo de defesa da boa imagem, desde logo porque depende da apreciação que o próprio visado faz".

Cartazes na rua, subsídios cortados

Em Abril, a Câmara do Porto retirou um subsídio de 11 mil euros à comissão promotora do 25 de Abril, depois de a União de Sindicatos do Porto ter criticado o facto de a autarquia ter removido das ruas dez painéis que publicitavam a realização de uma marcha e concertos. Em comunicado, Rio alegou que os sindicalistas "pretendiam impor à opinião pública a mensagem de que o executivo municipal estaria contra a efeméride". "Quem solicita apoios financeiros, logísticos e outros ao município tem a estrita obrigação de manter uma conduta de respeito pela instituição, abstendo-se de a hostilizar, no âmbito das próprias iniciativas que são objecto dos apoios concedidos", lia-se.

"Esse episódio é um exemplo claro de que a cláusula é abusiva", considera o constitucionalista Gomes Canotilho, dizendo não vislumbrar "qual é a censurabilidade da atitude dos sindicatos". Ressalvando que não conhece em pormenor o protocolo, arrisca ainda assim uma classificação: "Não poria [essa cláusula] num protocolo, porque me parece inadequada e excessiva relativamente à liberdade de expressão das instituições. É uma cláusula do tipo da "lei da rolha" relativamente às entidades financiadas."

Durante a discussão, Rio procurou estabelecer diferenças entre críticas ao município e críticas ao seu executivo. "Isto em nada vai coarctar a possibilidade de cada um dizer o que entende sobre o executivo municipal, porque o que se procura defender é a imagem do município", sustentou.

Para Canotilho, "a distinção é perigosa". "Como é que depois se distingue se a crítica visa o município ou o executivo?", questiona. Também o jurista Costa Andrade considera que "ninguém critica o município como entidade abstracta". "O que se critica são, naturalmente, aqueles que, em determinado momento histórico, exercem o poder em nome do município", acrescenta.

Costa Andrade entende que "a cláusula é juridicamente nula e eticamente intolerável", se o seu objectivo é obrigar a renunciarem ao direito de crítica. "O dever de uma câmara é gerir o dinheiro público em função da dignidade e do mérito das iniciativas e das entidades que subsidia e zelar para que esse dinheiro não seja usado para outros fins".

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