HABIBIE SETE HORAS EM LISBOA COM "SMS" DE TIMOR EM FUNDO

Tirou fotografias junto dos túmulos de Vasco da Gama e de Camões, nos Jerónimos, foi cumprimentado por turistas indonésios, na Torre de Belém, e almoçou com Cavaco Silva, em Belém. Sete horas depois, regressou ao Queen Mary 2, o terceiro maior paquete do mundo. Promete voltar até ao fim do ano. O PÚBLICO acompanhou a passagem por Lisboa do antigo presidente da Indonésia, Jusuf Habibie, o homem que abriu caminho à independência de Timor-Leste.
Por Adelino Gomes (texto) e Carlos Lopes (fotos)

08h12 CAIS DE ALCÂNTARA

Mal se divisa, por detrás do grupo de turistas que desce a escada do portaló do gigantesco paquete, acabado de acostar ao cais de Alcântara. Traz fato completo e gravata e um chapéu de palhinha na cabeça. Sorri, os olhos todo abertos, como a televisão o popularizou quando a Indonésia ardia contra Suharto e Timor-Leste fervia de esperança num referendo que ele acabara de anunciar. Jusuf Habibie, ex-presidente indonésio, desembarca em Lisboa, última escala de um cruzeiro de 12 dias do Queen Mary 2 pelo Mediterrâneo. Indonésio e também alemão (vive parte do ano numa casa em Hamburgo), o seu currículo enche páginas: engenheiro naval e aeronáutico, dono de uma fábrica de aviões (partilha com 12 outros engenheiros os royalties devidos ao desenho de uma das asas do Airbus), professor, presidente de uma poderosa fundação com sede em Jacarta. É Timor-Leste, porém, que torna esta sua visita tão particular. Timor-Leste, a quem abriu, há oito anos, as portas da autodeterminação.

09h00 PARABÉNS A VOCÊ

"Salamat Pamjang Umur", está escrito no bolo de aniversário, decorado com as cores da Indonésia. Depois de uma oração de graças, segundo o rito islâmico, os presentes entoam o "parabéns a você". Primeiro em bahasa, depois em inglês e, por fim, em (bom) português. Habibie faz hoje 70 anos. Há um ano, quando planeou um cruzeiro no Mediterrâneo, não sabia que a escala em Portugal iria coincidir com o aniversário, acabou de contar aos seus compatriotas, que enchem o salão da residência do embaixador da Indonésia em Portugal, o timorense Francisco Lopes da Cruz. Limitara-se a pedir um "jantar romântico", com a mulher, Ainun, uma médica reformada de notória elegância. O jantar será esta noite, já no alto mar. Mas antes ficou a visita à capital de um país cuja influência na cultura indonésia não se cansará de enfatizar. "Há cerca de duas mil palavras portuguesas na língua indonésia: camisa, mesa, cebola, sapato. Fomos colonizados pelos holandeses durante 350 anos e nem uma centena de palavras deles nos ficaram", lembra, depois de relatar, como perfeito conhecedor, a gesta de Vasco da Gama, a caminho das especiarias da Índia e das Molucas.

10h18 GAMA E CAMÕES

Entram no Mosteiro dos Jerónimos de máquinas na mão: Ainun filma, Habibie fotografa e faz-se fotografar. Junto dos túmulos de Vasco da Gama e de Camões; diante de um mapa que, mais à frente, no Museu da Marinha, mostra os mares "que geração algua não abrio" (Camões); à beira-rio, a Torre de Belém em fundo, quando um grupo de turistas indonésios o descobre e cumprimenta com grande efusão. "Os conservadores vêem nele o homem que saltou por cima da Constituição para resolver o problema de Timor-Leste. Mas os reformistas e democratas vêem nele o homem que deu ao mundo uma nova imagem da Indonésia", explica Lopes da Cruz ao PÚBLICO.

12h15 COCHES, BELÉM E ABÍLIO

O telefone toca. Habibie está no primeiro andar do Museu dos Coches, onde se entusiasmou pelo "carro triunfal" que D. João V mandou em embaixada, ao Papa Clemente XI, em 1716. Afasta-se para uma das balaustradas e ali fica a conversar. Do outro lado, Abílio Araújo. O antigo líder da Fretilin, hoje dirigente do Partido Nacionalista Timorense conheceu-o em 1994, em Londres, no início de um processo que o levou a aproximar-se das autoridades de Jacarta. É o mais longo dos telefonemas que atenderá na estadia em Lisboa. Abílio diz-lhe que todos na liderança timorense o respeitam. E tem, por isso, um pedido a fazer-lhe. Que telefone para Xanana, Alkatiri, Horta. Habibie responde que se sente manietado, pois se fizer alguma coisa, enquanto antigo presidente indonésio, dirão que está a interferir. "Vou rezar por Timor", promete. Abílio insiste. Uma palavra do antigo presidente poderia ser importante ,"principalmente para evitar a guerra". 12h32 MARIA E O SOL
- Obrigado pelo seu convite, diz a Cavaco Silva, ao entrar na Sala Dourada do Palácio de Belém.
- Bem-vindo a Portugal, responde o Presidente da República.
-Desculpe por o Sol não aparecer, acrescenta, a sorrir, Maria Cavaco Silva.
Antes do almoço (creme de coentros, cherne ao sal, papão de anjo com fruta, Quinta das Flores do Arouce 2003, branco, e Porto Burmester, 20 anos) , Habibie faz questão de falar aos repórteres, que querem saber o que pensa da situação em Timor-Leste. Qualquer solução, responde, deverá ser encontrada no quadro constitucional timorense. Se a Constituição não o permitir, "há sempre modos de fazer uma revisão"...
13h00 PAPÕES DE ANJO E TIMOR

Os convivas foram escolhidos a dedo: embaixadores da Indonésia em Portugal, Lopes da Cruz, e de Portugal na Indonésia, Santos Braga, embaixadora de Timor-Leste em Portugal, Pascoela Barreto, e o antigo cônsul-geral de Portugal em Jacarta, Pinto da França. Autor dos primeiros estudos sobre a presença portuguesa na Indonésia, em particular na ilha das Flores, Pinto da França é presidente da Associação de Amizade Portugal- Indonésia. Um encontro fica ali mesmo agendado, do diplomata português com Habibie, em Agosto próximo, aproveitando uma viagem de Pinto da França precisamente às Flores, 40 anos depois do seu estudo. O regresso de Habibie a Portugal, até ao fim deste ano, vai permitir, tudo indica, que o "Habibie Center" (a sua fundação) possa vir a estender a doutorandos portugueses bolsas de estudo que permitam investigar mais profunda e sistematicamente o multissecular relacionamento cultural entre os dois países. Timor paira, como tema recorrente, nas trocas de impressões entre os convivas. "O que é preciso é o diálogo", ouvir-se-á, em dado passo, sobre o bruáaa das conversas, a voz de Habibie a dizer.

14h45 TRAÇOS DE SUPERPOTÊNCIA
Lopes da Cruz chama o PÚBLICO. Como prometido, antes de embarcar, de volta ao paquete, Habibie dispõe-se a transmitir as últimas impressões sobre Portugal. Ali mesmo, no banco de trás do carro oficial que o trouxe até junto do portaló. "Estou muito impressionado com os portugueses", começa por dizer." Vêem-se em vocês, os traços de uma superpotência: a mentalidade, a maneira como olham para o mundo, a tolerância, a compreensão que demonstram em relação ao outro. E sorriem." Protesta, quando insinuamos que é gentileza a mais. "Não estou a exagerar. Senti-me em casa. Disse à minha mulher: foi a primeira mas não vai ser a última vez. Foi uma agradável surpresa. Repito-lhe o que lhe disse logo ao chegar: nunca fomos inimigos. Tivemos opiniões diferentes. Mas isso é saudável, não quer dizer que nos devemos matar. E nós herdámos muita coisa de vocês. A história tem altos e baixos. Mas nós continuamos amigos. Especialmente hoje, neste tempo de globalização, Portugal e a Indonésia podem cooperar. E ajudar Timor-Leste, em particular."

15h17 SMS E RECONCILIAÇÃO

Já se afasta do cais a mole imensa do Queen Mary 2, quando ribomba pela segunda e última vez o apito surdo da buzina do navio, audível a quase seis quilómetros. Um último aceno e Habibie e Ainun desaparecem, no interior do Queen Mary 2, em direcção ao deck 9, onde se situa a suite que ocupam. Lopes da Cruz continuará no cais, com a mulher, Sebastiana. Um olho no paquete, que se afasta, a caminho da barra e de Southampton, destino final do cruzeiro, o outro no ecrã do telemóvel, onde ao longo destas sete horas se sucederam SMS que o mantêm informado, minuto a minuto, da evolução da crise. "Sou embaixador da Indonésia mas também sou timorense. Como disse há pouco ao Presidente português, 90 por cento dos meus familiares estão em Timor-Leste. E há também os líderes timorenses. Estou quase todos os dias em contacto com eles. Chamando-os à reconciliação. Este momento exige-lhes que se mostrem à altura das responsabilidades para evitarem uma catástrofe."

Sugerir correcção