O "pseudo-arrastão" de Carcavelos considerado exemplo de má cobertura jornalística

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O director da Lusa disse que as imagens eram apelativas mas que só com muita imaginação se podia ver ali um arrastão Hélder Gabriel/Lusa (arquivo)

“Os jornalistas erraram e não pediram desculpa”: foi com estas palavras que Joaquim Fidalgo, jornalista e moderador do debate “O pseudo-arrastão um ano depois”, resumiu a conversa de ontem no Palácio Foz, em Lisboa.

Integrado no seminário Media e Imigração, organizado pelo Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, o encontro serviu para discutir a cobertura dos “media” portugueses aos acontecimentos do dia 10 de Junho do ano passado, na praia de Carcavelos, a que precipitadamente se deu o nome de arrastão.

Faz amanhã um ano que os noticiários de todo o país abriram com relatos de “pânico na praia”, imagens daquilo que descreviam como “milhares de pessoas em fuga”, numa “tarde de terror” com um “assalto sem precedentes”. Pelos ecrãs passaram fotografias de fraca qualidade onde vários jovens corriam pelo areal, enquanto em “voz-off” se descreviam os ataques aos banhistas desprevenidos por parte de centenas de jovens negros vindos de bairros desfavorecidos.

O termo "arrastão", de importação brasileira, enchia assim capas de jornais e entrava no léxico dos portugueses. Logo no início da conversa, o moderador apontou o dedo aos órgãos de informação, que acusou de não terem por hábito “reconhecer o erro ou pedir desculpas”.

Luís Miguel Viana, director de informação da Agência Lusa, foi mais longe ao identificar uma “alergia generalizada em reconhecer o erro”. Uma vez passada a palavra aos vários representantes das comunidades de emigrantes ali presentes, estes foram unânimes em lamentar a ausência de um pedido de desculpas formal por um tratamento que consideram racista, xenófobo e etnocêntrico.

Falta de notícias nas redacções potenciou exagero

A “fragilidade das redacções” a 10 de Junho, feriado nacional geralmente pouco movimentado, foi um dos motivos por detrás da má cobertura. O incidente da praia de Carcavelos foi “recebido com muita euforia”, salientou Luís Miguel Viana. As imagens que chegavam aos principais jornais eram apelativas, apesar de “apenas com muita imaginação se poder ver ali um arrastão”, comentou o director.

O painel de jornalistas presente no seminário foi unânime em considerar que o jornalismo português não saiu prestigiado pela maneira como tratou os acontecimentos de Carcavelos. Na pouca quantidade e má qualidade das fontes escondem-se os outros motivos.

A polícia de Cascais foi a primeira a avançar com os números de delinquentes na praia, fornecendo valores que mais tarde viria a desmentir – desmentido esse que não teve o mesmo impacto mediático do erro inicial. “No caso de um comunicado de fontes como a polícia, onde podem os jornalistas confirmar a notícia?”, interrogou-se o jornalista do Expresso, Mário Robalo.

O efeito bola de neve não se fez esperar: os políticos reagiram, o Governo garantiu maior policiamento e o medo instalou-se. Para Joaquim Fidalgo, o que se passou em Carcavelos foi um caso singular onde os jornalistas divulgaram uma notícia baseada em poucos depoimentos, “numa construção onde participaram políticos, polícia e media”.

A ideia de que o que se passou em Carcavelos foi, de facto, um “arrastão” igual ao das praias brasileiras perto das favelas cristalizou-se na opinião pública. “O poder da televisão é terrível em construir ou destruir a realidade que interessa”, resumiu a professora da Universidade de Coimbra Isabel Férin.

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