"The Wind that Shakes the Barley", de Ken Loach, vence Palma de ouro em Cannes

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O filme de Ken Loach é um olhar sobre o passado imperialista britânico Christophe Karab/EPA

Ken Loach, o realizador britânico do filme que ontem venceu a Palma de Ouro de Cannes com a película "The Wind that Shakes the Barley", resumiu, de alguma forma, a linha editorial do palmarés da 59ª edição do festival ao aceitar o seu prémio: "Se dissermos a verdade sobre o passado, talvez consigamos dizer a verdade sobre o presente".

"The Wind that Shakes the Barley", um olhar sobre o passado imperialista britânico, um filme sobre a guerra civil que opôs irlandeses independentistas às forças de ocupação britânica e estilhaçou laços de sangue e dividiu mortalmente irmãos, é de uma intencionalidade tal que o autonomiza do turismo "engagé" para se tornar um meticuloso, abstracto exercício sobre a tragédia da política e da guerra. É tanto um filme sobre o estado do mundo, hoje - para sermos directos: sobre a presença americana no Iraque -, como sobre o passado.

Sendo uma surpresa, esta Palma de Ouro - o filme não constava da lista dos favoritos - acaba por ser coerente com as outras decisões do júri presidido por Wong Kar-wai, e que incluiu os actores Mónica Bellucci, Helena Bonham-Carter, Zhang Ziyi, Samuel L. Jackson, Tim Roth e os realizadores Patrice Leconte, Elia Suleyman.

Que outra coisa é senão um filme sobre o estado do mundo, hoje - juntando temas do dia, globalização, migrações, racismo, terrorismo... - a obra do mexicano Iñarritu, "Babel"? O título é o programa...

Também "Flandres", de Bruno Dumont, filma a aventura humana como experiência de selvajaria. Nos filmes deste cineasta francês os homens estão sempre em conflito (mesmo o sexo é uma batalha), e aqui filma-se mesmo uma guerra. Decorre num país imaginário, mas tem os contornos de um país do Golfo.

Sempre se pode dizer que o sopro de tragédia que Loach imprime ao seu filme não tem equivalente nos outros dois, que são retóricos e demonstrativos. As personagens de Iñarritu são meros peões de uma construção narrativa em forma de puzzle globalizante, como proeza desportiva, à volta do mundo. E Dumont, aqui maniqueísta, está longe do choque e da experiência criativa que foi "L´Humanité", o seu polémico filme que Cannes premiou em 1999.

Um palmarés coerente

Mas sobre a coerência do palmarés, nada a dizer. O prémio de interpretação ao conjunto de actores de "Indigènes" é igualmente esclarecedor: o gesto, político, do filme (que é um convencional filme de guerra) é resgatar de uma memória e de uma identidade, trazendo à luz do dia um episódio esquecido: a participação de tropas berberes na libertação de França do domínio nazi. E esse gesto começa logo por estar enunciado na escolha do cast: um conjunto de estrelas do showbiz francês, actores de origem magrebina, que participaram no filme como trabalho de solidariedade, prescindindo dos cachets que o seu estatuto lhes permitiria cobrar.

No palco do Palácio dos Festivais estes actores falaram dos desejos "de toda uma geração" - a deles, filhos de imigrantes em França -, da necessidade "de uma memória, de uma história". Uma das últimas edições do diário francês "Le Monde" terminava o seu artigo sobre Indigènes desta forma: "O filme leva-nos a um exame de consciência sobre a maneira como tratamos hoje estes cidadãos".

E é assim que Pedro Almodóvar falha mais uma vez uma Palma de Ouro, apesar do prémio de argumento e do prémio para as seis actrizes do seu filme (algo exagerado; Penélope Cruz é o verdadeiro corpo de "Volver"). E é assim que o magnífico "Les Climats", do turco Nuri Bilge Ceylan, ficou de fora. Wong Kar-wai não estava "in the mood" para o amor.

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