Vamos por partes. Temos dois discos, um que se chama "Jupiter", outro que se chama "Mars". Não são temáticos. Cada um deles passa pelos vários caminhos que os RHCP percorreram e percorrem. "Dani California" é exemplar. Com uma das rolantes e suavemente subversivas batidas de Chad Smith, Kiedis faz a sua habitual voz em tons elevados, saltando imperceptivelmente entre o canto e rap-funk. As letras (sempre da responsabilidade do vocalista) são retratos de uma realidade norte-americana que Kiedis sofreu na primeira pessoa, desde as famílias hippies até aos assaltos, colagens que ele escreve ao correr da pena sem pensar. "Getting born in the state of Mississipi, Papa was a copper, and mamma was a hippie". Simplicidade a toda a prova. E com um refrão a banhar-se em pratos a voar e riffs de guitarra. Em "Charlie", o slap bass de Flea dos nos 80 é força propulsora, e Frusciante arranca com o catálogo de guitarras, desde a funky à dedilhada e ao solo. Após definir uma geração em "She's only 18" com a linha "don’t like the Rolling Stones", "Torture me" recupera o lado mais frenético da mancebosidade funk/metal. Em "Especially in Michigan" Flea leva o baixo a limites subsónicos, e enquanto Frusciante vai repetindo as notas orgasmicamente, os Peppers mostram a maneira como conseguem entrecruzar as vozes, numa letra que faz lembrar as tonitruantes relações de Kiedis nos seus vintes e trintas: "C'mon Huckleberry Finn, show me how to make her grin". "Wet sand" é uma balada de noite californiana que serve para mostrar os valores de produção que Rick Rubin (não) colocou – costuma deixar que os músicos cheguem ao que querem fazer e aí dá a indicação. Saltando de planeta, "Mars" mostra-se mais aventuroso, com o quase-cravo e coros de lá-lá-lá de "Dissecration smile" (que daria um belo single se não tivesse um título mórbido). "Readymade" abre a paleta a uns sopros de southern rock, e o longo "Turn it again" pisca um olhinho ao "disco" enquanto Anthony faz uma simples reflexão sobre os nadas que temos ou não. É tudo bom? Não, aparecem também "déjà vu", como "Tell me baby", punk-funk em piloto automático. Mas no cômputo geral, "Stadium Arcadium" não desilude. Não é um disco fácil, no sentido de que não se mostra claramente aberto a quem se chega a ele. É uma obra de um quarteto que compõe apenas consigo na mente, dos pedaços de baixo, "licks" de guitarra ou papéis que Kiedis vai escrevinhando e deixando pelas salas de ensaios. Pela brutalidade com que arrostaram canções e mais canções para este disco, pela honestidade com que as exibem, pela qualidade intrínseca de um CD que não esconde as suas origens bastardas, saúde-se "Stadium Arcadium". Mo Ostin, o director da Warner em 1989, mandou uma mensagem a Flea e Anthony quando estes decidiram assinar pela Sony após decidirem o término do contrato com a EMI, e desejou-lhes boa sorte, que fizessem o melhor disco que pudessem. E é isso que os Red Hot Chili Peppers têm tentado fazer disco após disco. Nunca chegam à almejada excelência, mas, como neste disco, alcançam bons lugares e visões nesses semifalhanços regulares. E aí reside a sua beleza.
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