The Drift

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Scott Walker abandonou as lides discográficas nos anos 70, fez um disco com escassa distribuição nos anos 80 e regressou em 1995 com "Tilt", o álbum alucinado que todo o melómano se apressou a qualificar como obra-prima. A sombra de "Tilt" fará com que "The Drift", o primeiro disco em onze anos, seja recusado. Porque, segundo já se diz, "The Drift" e "Tilt" são a mesma coisa. Argumento engraçado, não fosse ser leviano: a única coisa que une os discos é o simples facto de não serem pop.

Digamos que é o mesmo que dizer que um chimpanzé e um camarão-tigre são a mesma coisa porque não são seres humanos. Há um momento crucial para entender "The Drift": "Hand me ups". Começa com uma espécie de breakbeat (acústico) acentuado por drone de saxofone e piano. A voz do sexagenário Walker está no cimo dos agudos – e é de uma fragilidade impressionante, como um ex-cantor de ópera que se recusasse a admitir a impossibilidade de atingir as notas de antigamente. É propositado este efeito (patético e aterrador). Fica apenas a voz e Scott canta: "I felt the nail driving into my feet/ while I felt the nail driving into my hand". Walker encena Cristo e ocorrem-nos dois comentários: a canção é um portento de violência e estupor; uma canção não tem de ser apenas um refrão e uma ponte: pode ser uma encenação teatral em equilíbrio precário com uma precária estrutura. Refira-se que há uma série de sons em segundo e terceiro plano palmas, órgãos, gritos, um harpsicord desafinado...) que criam uma atmosfera de terror psíquico. Este "truque" repetir-se-á bastas vezes. "Cossacks are" inicia o disco com uma sequência estranha de acordes de guitarra e pesadíssima percussão. Scott declama definições de tirania, violência: "With an albatross across the torso" é uma das imagens usadas. Há uma serrilha de cordas a ruminar por trás, solavancos, acelerações e diminuições de andamento. Estamos próximos do registo de um requiem. É preciso entender que quando canta, em "Jesse" (o irmão nado-morto de Elvis Presley, usado aqui como imagem negativa do sonho americano), "noseholes baked in black cocaine", ele não está a reportar-se apenas a um vício. Walker é um velho, ainda joga em absolutismos e a decadência que aborda não é a do humano. Mas mesmo que rejeitemos essa grelha de interpretação baseada em arquétipos, como não sentir as fundações tremerem perante a voz (frágil, ruída, aparentemente insana) que canta "I'm the only one left alive"? Para que se perceba o limite de alucinação (se referirem: experimentação) a que Walker chega, refira-se que em "Buzzers" há samplers de burros a zurrar (é um estertor de violência, o tema). Não é gratuito: serve de elemento simultaneamente rítmico e de ruído, numa canção que parece esbofetearnos e ter-nos pavor. Não vale a pena justificar o apreço por obra assim à conta de vanguardismos ou experimentalismos, nem recusar o disco por se recusar o discurso normalmente associado a discos. Mas talvez seja pertinente referir que não há discos assim: que criam um universo sem par, afrontam cânones e leituras simplistas (do mundo), saem do seu universo (a música) para se tornarem Ideia. De uma aterradora beleza, o disco mais feio (e perigoso) que vão ouvir em muitos anos.

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