Nova vida para Ethan Hunt

Já tivemos a dose suficiente de fetichismo. Com Brian de Palma, "Missão: Impossível" era um jogo tão celebratório quanto funéreo, e a coisa não era para menos porque naquele enfiar e tirar de máscaras, naquele conjunto de poses iluminadas de forma clínica, estava uma espécie de canto de cisne para o "thriller" de espionagem: Ethan Hunt & companhia viviam o fim da guerra fria, era o fim de um tempo para os espiões, e Brian de Palma que sempre gostou de meter as mãos em cadáveres tratava(-lhes) do assunto. Foi em 1996, e a operação rendeu 456 milhões de dólares em todo o mundo.

Quatro anos depois, no auge do prestígio de John Woo em Hollywood (que já era, em termos do arco artístico da carreira do realizador de Hong Kong, uma coisa algo tardia...), a vedeta Cruise escolheu-o para coreografar a "sequela". As coisas não terão corrido muito bem entre um e outro (braço de ferro, saber quem manda mais, etc.), mas o fogo-de-artifício do cineasta acabava por servir o narcisismo da estrela. E é verdade que nesse filme, de 2000, John Woo desinteressou-se de tudo e quis apenas reproduzir até ao delírio o seu estilo. Resultado: uma extravagância abstracta que rendeu nas bilheteiras 546 milhões de dólares.

E estávamos no início do pico do domínio de Tom Cruise sobre o mundo. Aconteceu então, quando se começou a falar de uma possível "Missão: Impossível 3", um desfilar de realizadores destacados, convidados ou mais ou menos "protegidos" pela vedeta (David Fincher, Joe Carnahan, entre outros), uma série de argumentistas (como Frank Darabont), que logo a seguir, sem falarem muito sobre o assunto, e como quem não quer a coisa (não quiseram mesmo a coisa), disseram "passo". As explicações, ou as suposições, da imprensa iam sempre num sentido único: Cruise, produtor da "franchise", e o seu ego eram o "problema". A imprensa americana começou a escrever que ao terceiro "Mission: Impossible" era melhor chamar mesmo "Mission: Incompetent".

Nesses anos de arranca não arranca consolidava-se o retrato de Cruise como "control freak", figura quase alienígena, e subiam de tom na opinião pública a curiosidade e as especulações sobre a sua vida privada.

Foi esse o clima que antecedeu o anúncio de que J. J. Abrams, já argumentista de alguns filmes mas sobretudo figura que começava a ser rodeado de aura como criador de séries televisivas de culto, como "Lost", tinha sido escolhido por Cruise para a missão de realizar o número três da "franchise" depois de o actor passar um fim-de-semana inteiro obcecado com outra criação de Abrams, a série "Alias" (que o próprio Abrams já disse ter concebido influenciada por... "Missão: Impossível").

O encontro teria tudo para ser previsível: um nome com culto, sim, mas ainda não suficientemente poderoso, só podia ser apetecível para o controlador Cruise. Eis a surpresa. Para já, "Missão: Impossível 3" abdica do fetichismo dos filmes anteriores - passa-se pelas máscaras, pelas mensagens que se auto-destroem ou pela criação de mais um super-vilão (Philip Seymour Hoffman) como quem apenas sinaliza efeitos de reconhecimento. O narcisismo de Cruise, por seu lado, foi controlado - está mesmo diluído. Quase que apetece dizer que J. J. Abrams reinventa neste divertimento uma espécie de realismo para a "franchise" sobre a equipa de espiões.

Realizador e actor têm falado na atenção que quiseram dar ao outro lado da vida - o lado emocional - do espião. Desenharam um casal (Cruise e Michelle Monaghan) que poderá evocar (mas não é essa realmente a intenção) aqueles casais do cinema de James Cameron que se formam em fundo de apocalipse e de trepidação de acção mas não sabem exactamente o que o outro faz (Schwarzenegger e Jamie Lee Curtis em "A Verdade da Mentira", por exemplo). Neste caso, é Monaghan que não sabe o que Cruise faz. Mas, dizíamos, nem é propriamente o "interesse amoroso" que mais releva aqui. É mais interessante o facto de o heroísmo ter sido estilhaçado. O resultado é algo descarnado, como os efeitos de um verdadeiro tirar de máscaras final - na verdade, J. J. Abrams quase que consegue suprimir a sensação de "sequela" e, como tal, simular nova frescura.

As sequências de acção são, a esse título, exemplares: para além do fogo-de-artifício impressionante que se faz lançar (e há dois ou três momentos que parecem mesmo imbatíveis), o que as torna notáveis é o facto de irem contra a corrente da excessiva estilização das "cenas de acção" que hoje se filmam, pela forma como inscrevem a presença humana nesse turbilhão: de forma "suja", frágil, em dificuldades, gente banal e com desejo de vida "normal" (o grupo de amigos que rodeia o casal Cruise/Monaghan...) colocada em circunstâncias extraordinárias - correndo o risco de oferecer, contra a estilização dos filmes de DePalma e Woo, uma certa banalidade realista, é verdade (no fundo, aquilo que se transferiu hoje para os ecrãs de televisão), mas mostrando as coisas de forma mais orgânica.

Que tudo isto aconteça num momento contraditório da "persona" pública de Tom Cruise - ainda vigora o clima da máquina controladora mas, simultaneamente, ela dá alguns sinais de vida, mesmo que isso também provoque em muitos muita irritação, saltando no sofá de Oprah Winfrey ao gritar o seu amor por aquela que é agora sua mulher - não pode deixar de ter influência na recepção desta nova vida do (ex?) herói Ethan Hunt.

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