A selva dardenne

Foi mais ou menos há dez anos que os irmãos Dardenne começaram a tornar-se populares fora da Bélgica. 1996 foi o ano de "A Promessa" - e foi com ele, pelo menos aqui em Portugal, que os descobrimos. Luc e Jean-Pierre Dardenne (nascidos 1954 e 1951 respectivamente) já filmavam desde os anos 70.

Começaram por fazer documentários, mais destinados à televisão belga do que às salas de cinema. Depois reconverteram-se à ficção. "A Promessa" não foi o primeiro filme de ficção dos irmãos, mas foi o que chamou mais atenção para eles. O filme seguinte foi "Rosetta" (1999), vencedor da Palma de Ouro no ano do "palmarés polémico" do Festival de Cannes, quando o juri presidido por David Cronenberg lhes entregou o principal prémio, no meio de grande contestação. A miúda que interpretava o papel protagonista, Emilie Dequenne, levou o prémio de melhor actriz, e a justiça de tal atribuição não merece ser posta em causa porque Dequenne era uma presença impressionante, o tipo de "animal de écrã" que não cai das árvores aos pontapés: Rosetta parecia uma Mouchette alimentada a "speeds", a câmara perseguia-a como se tentasse, acima de tudo, aguentar o seu ritmo e a sua energia (a última vez que vimos Emilie Dequenne foi no ano passado, numa "Ponte de San Luis Rey" chatíssima, e ela estava irreconhecivelmente domesticada).

Depois de "Rosetta", os Dardenne voltaram (em 2002) com "O Filho". Momento de alguma exasperação, confessamos. Víamos em "O Filho" não uma cristalização do "estilo Dardenne" (cristalizar não é um mal) mas acima de tudo uma transformação desse estilo (ou dalguns dos seus sinais mais evidentes) numa espécie de efeito de assinatura. Era a "câmara-lapa", uma maneira de colar a objectiva aos corpos dos actores e de os seguir assim, "à pele", que se arriscava a tornar-se num esteréotipo destruidor.

Não havia nenhuma Rosetta em "O Filho" (o que por seu lado também era um problema), mas havia tudo o que os Dardenne andavam a filmar desde "A Promessa": um mundo socialmente compartimentado e sempre filmado no compartimento daqueles que em linguagem arcaica seriam os "proletários", um realismo exacerbado mas um pouco mais naturalista do que os Dardenne pretenderiam (a "câmara-lapa", podia-se pensar, servia de disfarce), personagens imersas em teia de "crime e castigo" (mas sem moral), e que numa obscura relação de causa e efeito transcendem o seu infortúnio social por via de uma determinação inquebrável - a "animalidade" de Rosetta, evidentemente, é reflectida por todos os protagonistas do "mundo Dardenne". Ao mesmo tempo (quer em "Rosetta" quer em "O Fillho", e novamente agora em "A Criança", sobretudo no final), uma espécie de sombra "bressoniana" a pairar, coisa extraordinária quando Bresson e os Dardenne devem ser, no método e no modo, os cineastas mais distantes do mundo. Porquê Bresson, então? Nem sabemos dizer exactamente (o que também é exasperante) - mas no "mundo Dardenne" diríamos que a "redenção" e a "salvação", mesmo sem referências religiosas explícitas, são factores em ter em conta, até no seu mistério, como se pelos heróis dardennianos (e pelas suas extraordinárias força e determinação) passasse uma ideia de predestinação (em sentido "jansenista", com ou sem aspas): porquê eles e não outros quaisquer?

a vida animal.

Basicamente reencontramos tudo isto em "A Criança". Não tem uma Emilie Dequenne, mas tem Jérémie Renier, que era o miúdo de "A Promessa" e entretanto cresceu - e também ele é um "animal", assim como o seu comparsa de malfeitorias (um miúdo de 13 ou 14 anos que tem um rosto impressionante, ora parece um adulto ora parece um rato). Difícil dizer se "A Criança" é melhor ou pior que os outros Dardenne. É, como dissemos, basicamente o mesmo, mesmo se neste caso se nota (com satisfação) que a "câmara-lapa" está menos lapa, já há uns metros entre ela e os actores, o que quer dizer há mais espaço no filme e portanto toda a gente respira melhor (espectador incluido, é sobretudo nele que pensamos).

Mas se tudo é mais ou menos igual, começamos não obstante a ter uma perspectiva nova. Expliquemos assim: um só filme dos Dardenne, qualquer um, sozinho, não é especialmente impressionante. Quatro ou cinco, aproximados uns dos outros, aí sim, começa a ser. Os irmãos parecem tão determinados quanto as suas personagens, criaram um estilo e um "modelo", e exploram-no de forma sistemática, tão sistemática que a sua obstinação começa a ser admirável. Foram mesmo capazes de uma proeza rara: olha-se para um plano dos Dardenne e há lá qualquer coisa que o identifica imediatamente, "isto é um plano dos Dardenne". A sua coerência estética e temática é inatacável - e em bloco (imaginamos mais uns cinco ou seis filmes dos Dardenne a juntar aos que já conhecemos) arrisca-se a ser esmagador.

Extraordinário, em "A Criança", é maneira terrivelmente fria como os realizadores resistem a qualquer "comentário", não traindo essa resistência nem em qualquer involuntário deslize, como muitas vezes acontece. Observam as suas personagens urbanas (outra vez uma Bélgica cinzentíssima, mas de tonalidades, diz-nos a nossa experiência belga, absolutamente realistas) como se estivessem na selva a filmar a vida animal. Não há moral, há instintos à prova de julgamento. Há um lado "luta de classes", mas sobretudo no sentido em que se pode dizer que na selva também há - e configura acima de tudo uma luta pela sobrevivência. Um casal que usa o seu bebé como instrumento para as suas manigâncias: filmar isto sem compaixão nem rebaixamento moral, é difícil. Um pai que vende o filho e depois diz simplesmente à mulher "deixa estar, fazemos outro": esta frieza amoral é raríssima. Um homem que, no fim, se entrega à polícia para salvar o seu parceiro (o miúdo com cara de rato), e no último plano do filme chora convulsivamente - nunca saberemos porquê, os Dardenne não deixam. E isso é o que é bom neles.

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