Adeus Grande Israel

Nada será como dantes. Acabou o sonho messiânico do Grande Israel. Há uma reconstrução do quadro partidário e uma mutação ideológica, à esquerda e à direita.
A vitória do Hamas funciona como acelerador do plano de retirada da Cisjordânia

O resultado das eleições israelitas encerra a era do Grande Israel, transforma a paisagem política, abre caminho à retirada unilateral da Cisjordânia e inaugura um período de nova conflitualidade, entre israelitas e entre estes e os palestinianos. Mudaram as regras do jogo.O fim do Grande Israel foi selado quando Ariel Sharon ordenou a retirada de Gaza e o desmantelamento dos seus colonatos. A maioria dos israelitas nunca foi muito seduzida pela ocupação mas o país esteve 30 anos refém dos colonos.
Os imperativos demográficos exigiam o abandono dos territórios ocupados. Mas, para isso, eram necessárias duas condições: mudar a ideologia expansionista do Likud e quebrar o tabu da colonização. Foi o papel histórico de Ariel Sharon: mostrou que se podia expulsar colonos; e, perante a resistência do Likud em mudar, fundou um novo partido centrista, o Kadima, para concluir a retirada e definir "unilateralmente" as "fronteiras definitivas" de Israel.
O legado de Sharon não é a paz mas um descongelamento da História. Estas eleições são a conclusão política da viragem iniciada em 2003 e apenas o princípio de algo ainda muito nebuloso. Ehud Olmert caminhará em terra incognita.

Nova paisagemA primeira mudança é o xadrez partidário. Uma força de centro - reunindo os "pragmáticos" da esquerda e direita, do Labour (sucessor do Mapam de Ben-Gurion) e do Likud (herdeiro da tradição revisionista de Jabotinsky e Begin, que queria toda a Terra de Israel) - passa a ser o pivot das coligações. É a primeira vez que, em Israel, um partido recém-criado vence as eleições.
Há dois outros fenómenos. À esquerda, Amir Peretz devolveu ao Labour a identidade social-democrata. No plano "diplomático", mantém o desígnio estratégico de chegar a um acordo negociado de "divisão da terra" com os palestinianos. Mas, com o Hamas no poder, rende-se ao "unilateralismo" de Sharon e Olmert.
A mais significativa mudança aconteceu na direita. O Likud, que persistiu na oposição à retirada dos territórios, foi cilindrado. Em compensação emerge o partido "russo" de Avigdor Lieberman, Yisrael Beiteinu (Israel Nossa Casa), que depois de se opor à retirada de Gaza comprendeu a mudança e passou a exigir uma separação radical: retirar dos territórios e "transferir" para a futura Palestina os israelitas árabes. "Sim à Palestina, não aos palestinianos."
O Likud foi também vítima da rejeição da política neoliberal de Benjamin Netanyahu nas Finanças, que relançou a economia mas rompeu o pacto de coesão social em que assentava o mosaico sócio-cultural israelita: o novo Labour, os religiosos sefarditas do Shas ou o partido dos reformados (GIL) devem os resultados à sua mensagem social.
Mas este factor não deve apagar a nova fronteira na direita. Se não largar a ideologia do Grande Israel, o Likud está condenado. Lieberman percebeu donde sopra o vento: os israelitas apoiam maciçamente a separação e não querem saber dos colonos. Fundou uma nova direita, "pós-territorial", que troca o messianismo do Eretz Israel pelo mito de um Israel homogéneo e sem árabes. "As suas ideias são perigosas", escreveu no Yedioth Aharonot o editorialista Nahum Barnea.
A Intifada fez crescer o racismo. Lieberman é intérprete do sentimento anti-árabe e não se limitou a falar ao eleitorado "russo": um terço dos votos vem de outras áreas. Quer liderar a direita.
O pragmatismo de Sharon e do Kadima levou analistas a falar na "desideologização" da política israelita. Será mais realista admitir uma mutação ideológica, à esquerda e à direita. "Apesar da aparente apatia do eleitorado, os resultados das eleições de 2006 são no mínimo uma revolução ideológica", escreveu o analista Uri Savir, no Jerusalem Post.
O mais imediato problema de Olmert, agravado por uma votação abaixo das expectativas, é a escolha da nova maioria. A coligação de que ele precisa para a retirada da Cisjordânia não é necessariamente a que ele deseja para governar, designadamente no domínio económico, explica o analista Ofer Shelah.
Se o Kadima tivesse obtido os 40 mandatos das sondagens iniciais, Olmert preferiria aliar-se aos partidos religiosos moderados e a Lieberman, deixando na oposição os trabalhistas, pois tanto estes como o Meretz (esquerda pacifista) garantiriam a aprovação do seu plano de retirada. Com 29 deputados (em 120) é impensável marginalizar o Labour.

A retirada da CisjordâniaOlmert propôs um plano de retirada de 90 por cento da Cisjordânia, transformando as legislativas num referendo. A vitória do Hamas nas eleições palestinianas pesou na decisão. Note-se que, nesta campanha, a esquerda evitou falar em "processo de paz". Tal como a maioria da direita deixou cair a palavra "colonatos".
A retirada é desejada pela larga maioria do eleitorado, mas suscita algum cepticismo. A evacuação dos colonatos da Cisjordânia é muito mais complicada, e muito mais cara, do que a de Gaza - envolve de 60 a 70 mil pessoas. Mesmo isolados, os colonos resistirão e Olmert não é Sharon.
Há claras divergências sobre o modus faciendi. Toda a discussão se faz sob o signo da segurança. Será realista definir unilateralmente as futuras fronteiras fingindo que os palestinianos não existem? O analista Ari Shavit, do Ha"aretz, considera que, sem aval palestiniano, o plano de Olmert "é perigoso" e vai conduzir ao "Hamastão", ao estabelecimento "de um Estado armado e hostil do Hamas, que desestabilizará Israel, a Jordânia e o Médio Oriente. (...) Temos de retirar. Mas devemos ter consciência dos perigos implícitos na retirada e negociar [com a Autoridade Palestiniana] antes de retirar."
O ex-trabalhista Haim Ramon, dirigente do Kadima, o homem que primeiro propôs a construção do Muro, reconhece o risco mas responde a Shavit: "Não estou disposto a deixar o meu destino nas mãos dos palestinianos e da comunidade internacional. Porque tenho um cancro. Governar os territórios é um cancro. E, consequentemente, não deixo ao meu inimigo a decisão de fazer ou não uma operação para remover o cancro."
Ramon remete as negociações para daqui a alguns anos. "Na verdade [a retirada] não é uma situação eterna. É uma fase anterior a conversações sobre o estatuto final, em condições mais cómodas." Aposta em que nesta fase o Hamas, ocupado em estabilizar o seu poder, não perturbará. Dentro do Kadima admite-se a inevitabilidade de negociar, mais tarde, a partilha de Jerusalém.
Olmert está ainda confrontado com outra opção. Prometeu dialogar com o Conselho dos Colonos (Yesha) e, ao mesmo tempo, obter a aprovação dos Estados Unidos. Ora, eles não têm os mesmos mapas. "O que Olmert quer é o reconhecimento americano", garante Aluf Benn no Ha"aretz. Em Washington a interrogação é outra: atolados no Iraque, perante a retirada unilateral e o Hamas, até que ponto se devem os EUA envolver neste processo?

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